Brasil assume identidade afro em política externa e se reposiciona na ONU
Com participação ministerial, exposição de artes, música e parlamentares, o governo Lula vai usar a ONU como palco para um reposicionamento de seu perfil internacional e assumir a identidade afro como parte da cultura, estratégia diplomática e de políticas sociais.
A iniciativa do governo vem num momento em que a sociedade civil e ativistas questionam a lentidão por parte da administração em implementar a mudança radical nas políticas sociais, depois de quatro anos de um desmonte da pauta de direitos humanos por parte do governo de Jair Bolsonaro.
Na próxima semana, a entidade realiza o Fórum Permanente Mundial Afrodescendentes da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, o maior evento anual sobre a questão racial. Ao lado dos EUA, o governo brasileiro assumirá a liderança dos debates e das negociações para a criação de uma Declaração de Direitos Humanos dos Afrodescendentes, que terá o peso de um tratado internacional.
Neste contexto - e como base da negociação - o evento vai debater o racismo ambiental, justiça reparatória, discriminação e desigualdade racial, xenofobia, educação e letramento racial, migração e refúgio de afrodescendentes e representatividade.
Além da participação do governo, ONGs e ativistas como Sueli Carneiro vão denunciar ao longo da semana o racismo, violência policial e desafios enfrentados pela população negra no Brasil. O encontro coincide com a visita da relatora da ONU para a defesa de ativistas, Mary Lawlor, e uma onda de violência contra ambientalistas e líderes comunitários.
Ainda assim, o governo quer marcar uma guinada na identificação internacional do Brasil. A delegação, que será liderada pela ministra Anielle Franco, levará para a ONU pelo menos seis mensagens e ações:
Assumir que a identidade brasileira é majoritariamente afro (52% da população) e um reconhecimento de um atraso na valorização desse perfil.
A ações do governo Lula por essa valorização, tanto do ponto de vista institucional (ministérios, politicas afirmativas, discussão com sociedade civil movimentos sociais), quanto político.
O ativismo conta o racismo nos esportes, inspirado por Vini Jr, Aranha, Tinga e outros jogadores.
O claro recado multilateral, de politica externa inclusiva e diplomacia afrodescendentes, com defesa do que já foi conseguido desde a Declaração Universal de Direitos Humanos, com a Década de Afrodescendentes e a Conferência de Durban.
Apoio ao lançamento da Segunda Década Internacional sobre Afrodescendentes (2025-2034).
Apoio da comunidade internacional para a negociação pelos países da Declaração de Direitos Humanos dos Afrodescendentes.
O reposicionamento não é apenas simbólico. No aspecto diplomático, a iniciativa interessa ao governo que tenta, depois de seis anos de ausência na África, retomar seu protagonismo no continente e ampliar as alianças. Isso inclui um reforço da cooperação com os países da CPLP e Caribe. Dentro do Itamaraty, porém, vozes críticas alertam que, apesar das boas intenções e de uma mudança no diálogo, a estratégia diplomática para a África é ainda uma incógnita.
Ao UOL, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que o trabalho do governo será ainda o de colocar o Brasil num compromisso de nível máximo para viabilizar a proclamação de uma segunda Década Internacional de Pessoas Afrodescendentes, para o período de 2025-2034.
"Vamos também incidir, e nos colocar como exemplo, a adesão dos países-membros ao 18º Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS 18), o da igualdade étnico-racial", disse. Segundo ela, o "Estado brasileiro aderiu voluntariamente, num compromisso com medidas para eliminação da discriminação racial no trabalho; ações por reparação, memória, verdade e justiça; habitação e saúde".
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JAMIL CHADE
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A promoção dessa guinada ainda é acompanhada por uma ofensiva cultural, tanto reconhecendo os crimes quanto valorizando.
Teresa Cristina vai cantar na abertura do evento. Outra iniciativa será a inauguração da Exposição de Arte Atlântico Vermelho, primeira exibição de arte contemporânea no Fórum Permanente Mundial Afrodescendentes da ONU.
O evento está sendo organizado pelo Instituto Luiz Gama, Paramar e pelo Instituto Guimarães Rosa - unidade do Ministério das Relações Exteriores responsável pela diplomacia cultural brasileira. No total, a exposição contará com 60 obras de 22 artistas afrodescendentes brasileiros, entre eles Rosana Paulino, Antônio Obá, Maré de Matos, Yuri Cruz, José Eduardo e Márvilla Araújo.
Os organizadores destacam que, apesar a multiculturalidade brasileira enaltecida pelo mundo inteiro, "o Brasil é um país extremamente racista, conforme revelam diversas pesquisas, especialmente, em espaços culturais".
Uma delas, do Projeto Afro, aponta como, no mercado de arte, 92,56% dos artistas são brancos, enquanto 4,36% são negros e 0,16% são indígenas. "Nesta sociedade extremamente racista, o papel dos artistas afrodescendentes é singular na luta pela efetivação dos direitos humanos, especialmente contra o racismo estrutural, na preservação do patrimônio cultural negro e na prevenção do apagamento histórico enraizado em perspectivas coloniais", afirmam os organizadores, em um comunicado de imprensa.
Além da exposição, os artistas irão debater a efetivação dos direitos humanos por meio do poder da arte. O grupo ainda vai elaborar um documento com sugestões de cláusulas de proteção aos direitos humanos culturais para serem incluídas na Declaração Universal sobre Direitos Humanos de Afrodescendentes.
Planejar o futuro
Para a Coalizão Negra por Direitos, o evento na ONU é considerado como fundamental. "O criminoso sequestro e tráfico transatlântico e escravização de milhões de africanos e de seus descendentes, durou quase quatrocentos anos, produziu cicatrizes profundas nas vidas dos sobreviventes da Diáspora Africana", disseram Zezé Menezes e Thuane Rodrigues Nascimento, representantes do movimento.
"Nos destituíram de humanidade, do direito ao território e à cidadania plena, nos impediram de viver com dignidade", afirmam.
"Como agravante, vemos a capilarização no estrato social de grupos da extrema-direita, que tem como parte de seu ideário o ódio contra a população negra, e que tem espalhado o terror e mortes para o que eles julgam serem socialmente indesejáveis", disseram as ativistas.
"Além disso, vemos a população marginalizada territorialmente: as periferias, quilombos e comunidades tradicionais, que são historicamente uma tecnologia social de sobrevivência do povo negro brasileiro, sem as devidas políticas públicas, sendo cada vez mais afetadas pela crise do clima e os problemas relacionados ao meio ambiente", afirmaram.
Segundo elas, portanto, o Fórum Permanente de Afrodescendentes "é um espaço de encontro da diáspora africana, onde trocamos experiências, vivências, na busca por estratégias para enfrentar, e vencer, os desafios que o racismo impõe em nossas vidas".
"É no Fórum Permanente que reafirmamos os avanços que a comunidade afrodiaspórica alcançou na ONU, como a Conferência de Durban, e cobramos a implementação das ações que constam no seu Plano de Ação. No Fórum nós planejamos o futuro e voltamos para nossos países para construí-lo", completaram.
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