Jamil Chade

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Reportagem

Ricos e emergentes racham, e mundo fica sem acordo sobre possível pandemia

Depois de dois anos de intensas negociações e diante de uma avalanche de desinformação promovida pela extrema direita internacional, os 194 países da OMS (Organização Mundial da Saúde) fracassaram em relação a um acordo que estabeleceria regras de como o mundo deve reagir a uma nova pandemia.

Sem um entendimento, as regras que impedem a distribuição de vacinas e a concentração de poder nas mãos dos países ricos prevalecem.

A meta era a de ter um pacto no qual nacionalismos seriam substituídos por uma estratégia para permitir que o mundo reaja de forma mais eficiente do que ocorreu durante a pandemia da covid-19, quando 14 milhões de pessoas morreram.

Entre as medidas estava um pacto para corrigir as desigualdades no acesso a vacinas e tratamentos entre os países mais ricos e os mais pobres.

Na noite da sexta-feira, economias emergentes e as ricas não se entenderam sobre a questão de acesso às vacinas e tecnologias, impedindo que houvesse um acordo.

Europeus e americanos queriam exigir que países emergentes entregassem amostras de vírus e patógenos, assim que um surto ocorresse. Para as economias mais pobres, isso deveria ocorrer apenas com a garantia de que eles teriam acesso às vacinas que seriam produzidas a partir das amostras entregues.

Nos discursos dos países africanos, latino-americanos e muitos asiáticos, era evidente a revolta e o trauma por não ter conseguido vacinas entre 2021 e 2022, enquanto doses eram empilhadas em armazéns nos EUA e Europa.

O tratado propunha que a OMS ficasse com 20% da produção de vacinas, testes e tratamentos, como uma espécie de garantia para que os países mais pobres pudessem enfrentar uma pandemia. O acordo também previa que governos teriam de divulgar seus acordos com as empresas farmacêuticas, durante uma pandemia.

Mas os países ricos se recusaram a facilitar qualquer tipo de acesso às vacinas, diagnóstico ou tratamento, mantendo a ideia central das patentes e da inovação. Não houve acordo tampouco sobre a transferência de tecnologia.

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Na OMS e entre especialistas, não há dúvidas de que outra pandemia pode atingir o mundo. O que se esperava era ter uma comunidade internacional mais preparada. A meta era aprovar o tratado durante a Assembleia Mundial da Saúde, que começa na próxima semana.

Agora, a proposta será de apenas ampliar o tempo de negociação por mais um ano. Os mais céticos alertam que, quanto mais longe da pandemia, menor será o sentido de urgência em se chegar um acordo. Outros também destacam que pouco mudará no mundo em doze meses para que haja um convencimento dos países ricos a ceder tecnologia e acesso às vacinas.

Chefe da OMS diz que "não é fracasso"

Numa tentativa de manter o processo vivo, o chefe da OMS, Tedros Gebreyesus, se recusou a chamar a crise por seu nome. "Isso não é um fracasso", disse. "Vamos tentar de tudo - acreditando que tudo é possível - e fazer isso acontecer porque o mundo ainda precisa de um tratado de pandemia", disse ele.

Nos países ricos, a pressão foi intensa contra qualquer sinalização para ceder às demandas dos países em desenvolvimento. Senadores republicanos dos EUA escreveram uma carta ao presidente Joe Biden pedindo que ele não atendesse aos argumentos dos países mais pobres, já que isso iria "destruir os direitos de propriedade intelectual".

Já o Reino Unido anunciou que só assinaria um acordo que atendesse ao interesse nacional e à soberania britânicos.

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Negacionismo e extrema direita impactam negociação

O processo fracassado ainda foi marcado por uma onda de notícias falsas, promovidas principalmente por forças ultraconservadoras e ecoadas pelo movimento de extrema direita nos EUA e na Europa.

Centenas de contas surgiram para ampliar a campanha contra a negociação, incluindo acusações infundadas de que o novo tratado seria um ataque contra a liberdade de expressão.

Uma das contas usadas para espalhar fake news é da influenciadora Sassafrass84, que afirma que "está aqui para reeleger Trump". Em suas páginas, seus seguidores encontram alertas falsos como: "tropas da ONU podem ser enviadas para reunir e vacinar a população".

Em letras menores, mas não menos dramáticas, ela afirma que essa ameaça "também se aplica ao uso da máscara". Ou seja, a conta dá a entender que tropas internacionais poderiam invadir um país para obrigar as pessoas a usar a proteção, uma mentira.

Se até aqui o alerta era de que esse tipo de campanha ameaçava eleições ou regimes democráticos, especialistas e diplomatas apontam que a negociação sobre o Tratado da Pandemia é o primeiro caso conhecido de uma ofensiva da desinformação como forma de minar um tratado internacional.

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Um dos elementos que chocou os negociadores foi a pressão criada pelas campanhas de desinformação. Como resultado, embaixadores e diplomatas passaram a ter de dar explicações a seus respectivos governos e parlamentares sobre elementos que sequer estavam negociando.

Também acabaram desacelerando o processo negociador, temendo que fossem vistos como pouco transparentes, um argumento amplamente usado pelos autores de teorias conspiratórias sobre supostos acordos secretos.

Nos EUA, em meio à corrida presidencial, Steve Bannon instrumentalizou o tratado para atacar Joe Biden, ao mesmo tempo em que abriu espaço em seu programa para "denunciar" a tentativa de contornar o Congresso dos EUA, a fim de adotar o acordo.

"O governo Biden está em processo de finalização de um acordo que daria à OMS autoridade quase total para ditar as políticas dos Estados Unidos durante uma pandemia", diz a legenda de uma postagem no Instagram do ultraconservador The Epoch Times, sem qualquer relação com a realidade.

De acordo com o "relatório", o tratado incluiria "políticas de vacinação, de confinamento, de fechamento de escolas, rastreamento de contatos de cidadãos americanos e até mesmo o monitoramento de discursos online se esses discursos forem contra a narrativa oficial".

O que diplomatas descobriram é que a campanha de "conscientização" já vem ocorrendo há meses. Ainda em 9 de maio de 2023, por exemplo, o tratado foi um dos principais tópicos de discussão durante o programa que Bannon mantém nas mídias sociais. A ex-deputada republicana de Minnesota Michele Bachmann foi entrevistada pelo guru da extrema direita e acusou Biden de "apresentar emendas que proporiam que todas as nações da Terra cedessem sua soberania sobre as decisões nacionais de saúde para a OMS".

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Dez dias depois, Tucker Carlson, da Fox News, também espalhou as mentiras sobre o tratado. "O governo Biden está muito próximo de entregar à Organização Mundial da Saúde o poder sobre todos os aspectos, os aspectos íntimos, de sua vida. Então, imagine os abusos das liberdades civis que você viveu durante os lockdowns da covid, mas permanentes e administrados por um país estrangeiro", disse ele.

Do outro lado, o governo americano tenta negar as falsas alegações da extrema direita. Em uma declaração, insistiu que "é falso afirmar que a Organização Mundial da Saúde tem agora, ou terá em virtude dessas atividades, qualquer autoridade para direcionar a política de saúde dos EUA ou ações nacionais de resposta a emergências de saúde".

Ligações com bolsonarismo

Mas a força da extrema direita não inclui apenas blogueiros e contas de mídia social. Em Genebra, a Alliance Defending Freedom (ADF) International também está reforçando as alegações de que o tratado pode impor restrições à liberdade de expressão.

O argumento é usado diante de um dos artigos do tratado que, se aprovado, exigiria de governos que lutem contra a desinformação durante uma pandemia. Durante a covid-19, especialistas de todo o mundo chegaram à constatação de que a desinformação estava minando o combate ao vírus e gerando mortes.

Agora, a manobra dos grupos ultraconservadores é vista por fontes internas da OMS como uma tentativa de bloquear qualquer ação de governos ou organizações internacionais de contra-atacar as mentiras que estão sendo espalhadas. "O que eles querem dizer com liberdade de expressão é a liberdade de disseminar a desinformação", argumenta um negociador.

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Nos EUA, o Southern Poverty Law Center qualificou a ADF como um grupo de ódio, que apoia a "recriminalização de atos sexuais entre adultos LGBTQ consentidos nos EUA (...) e afirma que uma 'agenda homossexual' destruirá o cristianismo e a sociedade".

A ADF manteve uma estreita colaboração com o governo de Jair Bolsonaro, e seu escritório nos EUA chegou a receber a visita de representantes brasileiros.

Em meados de 2019, Damares Alves aproveitou uma viagem aos EUA como ministra de Direitos Humanos para se reunir com a entidade, em Washington. Dias antes, o Brasil decidiu participar de um evento patrocinado na ONU, em Genebra, pela ADF International. O tema: liberdade religiosa. O governo aproveitou o evento para denunciar suposta perseguição contra cristãos.

Representantes da mesma organização fizeram parte de reuniões entre a pasta de Direitos Humanos e o Itamaraty. No dia 22 de maio de 2020, por exemplo, um encontro ocorreu envolvendo deputados brasileiros, representantes do Itamaraty, do Ministério de Direitos Humanos e Tomás Henriquez, da ADF Chile.

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos —que chegou a ter Damares como membro— estabeleceu um acordo com a ADF. Num comunicado que anunciava o projeto, chamado de Blackstone Legal Fellowship, a associação indicou que a parceria tinha como objetivo "enviar estudantes evangélicos brasileiros que cursam direito para fazer um estágio intensivo nos EUA".

Agora, em uma declaração em fevereiro de 2024, o grupo ultraconservador americano assume a bandeira da liberdade de expressão para justificar ataques contra o tratado. Segundo eles, o texto preliminar da OMS atualmente em consideração "comprometeria os estados a combater coisas como informações enganosas ou desinformação, sem oferecer uma definição para esses termos ou especificar como isso seria feito".

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"A minuta atual do Acordo Pandêmico da OMS implica que as pessoas devem ser protegidas de 'informações' que poderiam ser subjetivamente rotuladas como 'enganosas' ou simplesmente consideradas 'excessivas' pelas autoridades", argumenta Giorgio Mazzoli, Diretor de Advocacia da ONU na ADF International.

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