Jamil Chade

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PL antiaborto viola padrões internacionais e ameaça vida, diz perita da ONU

O PL antiaborto viola padrões internacionais de direitos humanos e, se aprovado, representaria uma ameaça para a vida principalmente das mulheres mais pobres do Brasil.

O alerta é de Leticia Bonifaz Alfonzo, perita do Comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e que, no mês passado, examinou a situação brasileira.

Em entrevista ao UOL, ela deixou claro que o projeto de lei vai no sentido contrário ao que o direito internacional reconhece. Nesta semana, a Câmara dos Deputados aprovou, em votação relâmpago, a urgência do projeto de lei 1904/24. O PL equipara a punição de abortos realizados após as 22 semanas de gestação em casos de estupro a pena por homicídio. Gestantes e médicos seriam punidos, com penas eventualmente superiores ao estuprador.

Com isso, a proposta pode ser analisada no plenário a qualquer momento, sem a necessidade de passar pelas comissões temáticas. O autor da proposta, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), tem como objetivo alterar o Código Penal, que afirma desde 1940 que o aborto não é punido em casos de estupro e risco à vida da mãe. Para médicos e especialistas, a lei teria um impacto forte sobre as meninas das camadas mais vulneráveis da sociedade.

"Essa lei obviamente estaria fora dos padrões internacionais", disse. "A CEDAW trabalha com um esquema no qual o ideal é que se deixe um espaço de liberdade até 12 semanas (para um aborto). Se isso não é possível, pelo menos deve haver uma garantia em caso de estupro ou quando a vida da mãe está em risco", disse. "Esses são os padrões internacionais e qualquer ação contrária vai ter reações por parte da ONU. E é por isso que é tão importante continuar acompanhando o que ocorre em Brasília", afirmou.

Para a perita, quem mais fica ameaçada por leis como essas são as mulheres com menos poder aquisitivo. "Com os níveis de contraste que tem o Brasil, com a riqueza e apodera, são as mulheres com escassos recursos que recorrem ao aborto clandestinos, e são elas que temos de proteger", disse.

Para ela, se leis como o PL 1904/24 entram em vigor, as práticas clandestinas continuam em "situações que colocam risco as vidas dessas mulheres".

O debate sobre o aborto no Brasil ocorre justamente em um momento em que a ONU cobra do país a descriminalização do aborto e seu acesso seguro, além de uma redução das taxas de mortes maternas.

No informe de recomendações do comitê, as peritas ainda destacaram o "fundamentalismo religioso" no Brasil. "Há uma representação religiosa que quer impor suas próprias linhas que, se do ponto de vista religioso pode ser válido, não se podem ser levadas às politicas públicas", defendeu a perita.

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Ela conta que, antes mesmo de entrar para o Comitê, esteve no Brasil. "Vi essa tendência de defender que a mulher precisa voltar para casa, cuidar das crianças. Mas a mulher tem direito a decidir, inclusive de optar por isso se ela quer. Mas também ter presença no espaço público e onde ela quiser", disse.

Para a especialista mexicana, é na educação que isso precisa começar a mudar, desmontando os estereótipos. "Isso é chave e é a partir dali que começa a discriminação contra as mulheres", indicou.

O Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres submeteu ao governo federal as seguintes recomendações:

  • Legalize o aborto e descriminalize-o em todos os casos e garanta que mulheres e meninas tenham acesso adequado a serviços de aborto seguro e pós-aborto para assegurar a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia econômica e corporal para fazer escolhas livres sobre seus direitos reprodutivos;
  • Reforce as medidas para combater a taxa alarmante de mortalidade materna, inclusive melhorando o acesso a cuidados pré-natais e pós-natais e a serviços obstétricos de emergência prestados por parteiras qualificadas em todo o território do Estado Parte, e abordar suas causas fundamentais, como complicações obstétricas, gravidez precoce e abortos inseguros.

Para a perita, temas que foram colocados de lado nos anos de Bolsonaro puderam começar a ser resgatados no atual governo de Lula. Mas alertou que nem tudo terá de esperar uma composição adequada do Congresso para que medidas possam ser adotadas.

"Voltar a ter acesso à saúde sexual e reprodutiva ou combater os estereótipos é algo fundamental para retomar o caminho para a emancipação das mulheres", disse.

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Segunda ela, independentemente da composição do Congresso, o Executivo pode implementar medidas de políticas públicas que representem avanços. "Vamos estar muito atentas sobre como os países vão adotando as recomendações que o Comitê apresenta. Mas vemos o que se pode fazer e que passos possam ser dados por parte do Executivo, sem esperar o Legislativo", disse.

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