Jamil Chade

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Evento promovido por fazendeiro que negou escravidão é boicotado na Suíça

Sindicatos brasileiros promoveram um boicote contra um evento que tradicionalmente é organizado pelas entidades patronais do país, às margens da Conferência Internacional do Trabalho, na Suíça.

O boicote ocorreu após o fazendeiro e empresário Gedeão Silveira Pereira, vice-presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e que representa as organizações patronais, dizer na segunda-feira (10) que não existia trabalho escravo no Rio Grande do Sul. Ele ainda provocou o governo no que se refere ao arroz e atacou o Bolsa Família por supostamente ampliar a "falta de mão de obra" no país.

A fala ocorreu ao lado do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, e numa reunião interna da delegação brasileira, durante a Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra. A delegação nacional é composta por membros do governo, das entidades patrocinais e por sindicatos. Lula será o convidado de honra do evento, na quinta-feira (13), e discursará justamente sobre o trabalho digno.

Em sua fala, cujo áudio foi obtido pelo UOL, o fazendeiro gerou indignação por parte dos sindicatos que estavam presentes e em membros do governo, que rebateram os comentários.

Pereira citou as denúncias de trabalhadores resgatados em condições análogas às de escravo no setor do vinho no Rio Grande do Sul, em 2023. Ele, porém, colocou em dúvida a existência dos crimes. Para ele, isso teria sido apenas "uma distorção das aplicações da legislação trabalhista" e alertou que a culpa seria da burocracia.

O vice-presidente da CNA começou sua apresentação com uma crítica ao governo Lula, em referência ao arroz. "Sou agricultor lá na fronteira com o Uruguai e empregador, plantador de soja e arroz. E há uma grande dificuldade com o governo federal neste tema, diga-se de passagem", afirmou Pereira, com o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, ao seu lado.

Trabalhadores escravizados no Sul

Em 22 de fevereiro do ano passado, uma ação conjunta entre a Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 207 trabalhadores que enfrentavam condições de trabalho degradantes em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha.

"Imaginem os senhores cumprir uma burocracia intensa para alguém que tem que colher uva em três dias, dois dias ou quatro dias", rebateu o empresário, na reunião de ontem na Suíça.

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"Se ele vai assinar a carteira de trabalho, se ele vai fazer toda a... Ele não consegue colher a uva, e quem é que perde? Vai perder o Brasil. E é trabalho escravo isso? Não, não é", disse. Para ele, esses trabalhadores recebem um salário "superior a qualquer salário mínimo vigente no país".

Boicote escancara mal-estar

Na noite desta terça-feira (11), a CNA organizou um evento no qual reuniria num jantar sindicatos, governo e empregadores. O encontro num hotel de luxo de Genebra ainda seria uma espécie de prévia para a chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas os representantes da CUT, CTB e CSB optaram por não comparecer ao evento, escancarando o mal-estar na delegação brasileira. O único sindicalista presente foi Miguel Torres, da Força Sindical.

Marinho, porém, optou por ir ao evento, assim como os demais empresários. Durante o evento que gerou o mal-estar, na segunda-feira, o ministro lembrou do caso de Blairo Maggi que havia adotado inicialmente por postura similar ao negar o problema. O empresário, porém, acabaria sendo um dos grandes aliados no combate ao trabalho escravo.

Auditores alertam que negacionismo da CNA prejudica exportação

Além do boicote, o Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho) emitiu uma nota na qual "repudia veementemente a lamentável declaração do fazendeiro Gedeão Silveira Pereira durante a Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra".

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"Esperamos que a fala de Gedeão não represente a opinião do setor agropecuarista nacional, a despeito da posição do fazendeiro como representante da CNA e presidente da Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul)", disse.

Segundo eles, a negação da existência de trabalho escravo em vinícolas do Rio Grande do Sul, feita por Gedeão "é inadmissível e remonta a várias décadas atrás, quando eram silenciadas as denúncias que davam conta da persistência da exploração nos moldes escravocratas em plena era republicana".

"Como braço do Estado responsável pelo combate ao trabalho escravo, os auditores fiscais do Trabalho constatam a persistência dessa chaga em todas as regiões do Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul", apontaram.

Eles citaram casos recentes, como o resgate de mais de 200 trabalhadores na colheita de uva em regime análogo à escravidão em fevereiro de 2023, em Bento Gonçalves (RS), como "provas que derrubam o negacionismo contido na infeliz declaração do fazendeiro".

"Ignorar esse e tantos outros episódios é fechar os olhos para a exploração e o sofrimento de muitos brasileiros que, ao procurar trabalho, acabam tendo sua liberdade restringida, são submetidos a condições degradantes, e ainda sofrem agressões físicas, como aliás ocorreu naquele município", afirmaram.

Na avaliação do grupo, o esforço do país para garantir trabalho decente é "fundamental para sua imagem no exterior e para que os diversos mercados que o país abastece com a exportação dos mais diversos tipos de produtos, mormente gêneros alimentícios, sejam mantidos abertos e receptivos".

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"O mundo está cada vez menos disposto a consumir itens produzidos a partir da exploração de seres humanos. Infelizes e desinformadas, além de retrógradas, as afirmações de Gedeão Pereira ameaçam manchar a imagem do agro brasileiro no cenário internacional", completam.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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