Jamil Chade

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Opinião

Manto tupinambá voltou, mas europeus guardam ainda 2.000 peças brasileiras

Nesta semana, os governos de Brasil e Dinamarca comemoraram o fim de uma longa negociação que permitiu que o manto tupinambá retornasse ao país, depois de séculos. Mas o Museu Nacional da Dinamarca onde ele estava ainda mantém 2.000 peças brasileiras em seus arquivos e não tem qualquer plano - ou vontade - de devolvê-los.

O manto tupinambá que chegou ao Brasil é um dos 11 que existem no mundo. Sua viagem foi carregada de simbolismo. O processo de devolução envolveu uma longa negociação diplomática e tem como objetivo tornar o manto a peça central na reinauguração parcial do Museu Nacional no Rio de Janeiro.

Até deixar a Europa, o manto de um 1,8 metro estava exposto num dos principais salões do Museu da Dinamarca. A peça foi confeccionada a partir de penas da ave guará, típica das regiões de manguezais, e que geralmente é vermelha por causa do hábito de comer caranguejos da mesma cor. Utilizado em rituais religiosos, para agradecer ao deus sol ou na morte de um guerreiro, ele era a conexão com o divino. Um portal ao transcendental.

A volta do manto, porém, foi negociada sem qualquer reivindicação do Brasil por reparação ou dentro do marco de questionamento do colonialismo, tema que tem mobilizado o debate entre ex-colônias e metrópoles.

O caminho optado pelo Itamaraty foi o tratar apenas um gesto de solidariedade e cooperação na reconstrução do acervo do Museu Nacional do Rio, incendiado em 2018. A consideração era que, se o tema da reparação fosse apresentado aos europeus, o debate ganharia outra dimensão e, eventualmente, não haveria um retorno.

Tudo começou quando o embaixador Rodrigo Azevedo Santos visitou o manto em 2021 e, logo depois, leu uma reportagem na revista Piauí de que nunca havia sido solicitado seu retorno ao Brasil.

Ao tirar a carga da questão colonial, ele ainda foi buscar dois apoios. Uma carta do povo tupinambá, chancelando o pedido de retorno da peça, e uma carta do Museu Nacional do Rio, indicando quais seriam os planos de exposição e que papel o item teria para a nova coleção.

Quando visitei o museu, em 2023, um de seus principais pesquisadores, Christian Pedersen, me explicou que a decisão foi "difícil e complicada", mas esses fatores foram fundamentais para que a cúpula da instituição e o governo europeu dessem o sinal verde.

Naquele momento, o dinamarquês explicou que, depois de 300 anos como parte de sua coleção, a peça foi avaliada em termos de seu valor para o Brasil e o que ela representava num museu. "Entendemos a importância gigante que teria para indígenas e para o museu no Rio", disse.

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Mas ele também insistiu em despolitizar o retorno. "A questão não era se ele não pertencia aqui ou se o colonialismo representou um erro. A questão era que Brasil estava em situação especial. O fogo nos doeu também", explicou, em referência ao incêndio que destruiu o Museu Nacional em 2018.

O museu dinamarquês se orgulha de ter realizado uma das maiores repatriações de obras estrangeiras entre as instituições europeias, com o translado de 35 mil peças para a Groenlândia.

Pedersen destaca, no entanto, que a instituição não conta com uma política padrão de devolução de obras. Segundo ele, critérios são considerados quando um pedido chega. Essas solicitações, porém, são raras. Apenas três em dez anos.

"Olhamos a reivindicação, se a obtenção da peça foi ilegal ou não ética, e qual a herança cultural para aquele povo", explicou.

Não envergonhar os dinamarqueses

Pedersen defende outro comportamento ao tratar das peças que, por séculos, foram levadas de grupos tradicionais pelo mundo.

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"O manto tem uma história local. Mas também tem uma história para a humanidade. Quando voltar ao Brasil, ele terá uma história europeia também. O que conta sobre o colonialismo, sobre a globalização. O que queremos fazer é trazer mais historia para os objetos e mais diálogo", disse Christian Pedersen, do Museu Nacional da Dinamarca

Ele admite que é o momento de "falar mais sobre história, inclusive sobre os lados mais difíceis", mas pede "equilíbrio". "Não queremos que o público que entra num Museu aqui se sinta envergonhado por ser dinamarquês", disse.

Segundo ele, uma das formas de superar esse debate é a cooperação entre museus. De fato, o manto é apenas um entre outros quatro que o museu dinamarquês tem guardados e que ajudam a contar a história dos tupinambás.

Há ainda mais de 2.000 peças espalhadas pelos salões e arquivos e que tiveram o Brasil como ponto de partida.

Não há planos, entretanto, de ampliar o processo de devolução e nem de entregar novas peças. Segundo Pedersen, nas cartas dos indígenas, há uma declaração de que não haverá outra reivindicação. "Não esperamos novos pedidos", disse.

Uma forma de cooperar foi a de fechar um acordo com os brasileiros para que todas as 2.000 peças existentes na Dinamarca fossem digitalizadas. Mas não há planos de qualquer gesto para devolvê-las.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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