Quem é suficientemente humano para ser salvo num naufrágio no Mediterrâneo?
A Guarda Costeira da Itália garantiu que está fazendo todos os esforços para encontrar os desaparecidos depois do naufrágio de um veleiro na costa da Sicília. Helicópteros e barcos foram enviados para a região, enquanto mergulhadores treinados para locais de alto risco foram deslocados para a operação de resgate. Horas depois, as autoridades britânicas indicaram que também estavam mandando para o sul da Europa uma equipe com quatro investigadores para tentar entender como o barco havia afundado, depois de enfrentar uma tempestade.
Os trabalhos de busca continuaram mesmo pela noite, enquanto os porta-vozes da proteção civil em Palermo insistiam que iriam agir de forma "incessante" para encontrar as pessoas que tinham desaparecidos.
É obrigação do Estado sair ao socorro dessas pessoas. Todos eles e todas suas famílias merecem essa atenção, principalmente por parte de um continente que prova que tem recursos para tal operação. São vidas humanas, e todas contam.
No barco que gerou uma megaoperação de resgate estavam 22 pessoas. Uma delas era o empresário Mike Lynch, conhecido como o "Bill Gates britânico". Também está desaparecido o chairman do banco Morgan Stanley, Jonathan Bloomer.
Pela Europa e pelo mundo, jornais publicam o perfil de cada um deles, assim como a informação de que o superiate de luxo foi alugado por R$ 1,2 milhão por semana.
Mas o que chama a atenção é que tal esforço não é necessariamente o mesmo aplicado quando barcos repletos de imigrantes afundam no mesmo mar Mediterrâneo, na mesma região nas costas da Sicília.
Em dez anos, cerca de 20 mil africanos que tentaram chegar ao outro lado sucumbiram. Nenhum jornal jamais publicou seus nomes. Muitas de suas famílias jamais terão sequer a chance de enterrar seus corpos, jamais recuperados. Para muitos, trata-se de um mar vermelho.
Nos últimos anos, as autoridades italianas endureceram as leis contra a imigração e passaram a considerar criminosas as entidades que saíam ao mar para socorrer os náufragos. Alguns desses agentes humanitários foram presos e levados diante de tribunais. Em um certo momento, os portos italianos foram fechados para grupos que formavam uma espécie de guarda costeira clandestina com o objetivo de impedir que os africanos morressem.
Não foram poucos os casos de barcos de socorro dessas entidades que perambularam pelo Mediterrâneo, em busca de um porto seguro que os aceitasse.
Quando parecia que a hipocrisia havia chegado ao seu limite, num dos casos de um barco onde dezenas de pessoas foram encontradas sem vida depois de ficar à deriva pelo mar por dias, o governo em Roma decidiu dar a cidadania italiana aos mortos. Era uma "homenagem", explicaram os políticos.
Por séculos, os europeus que desembarcaram em terras distantes debatiam se aquela população local que encontraram tinha ou não alma. A definição era fundamental. A consequência de não ter alma era a de que não seriam designados como humanos, uma prova cabal de que o conceito jamais se referiu à condição biológica. Eles, portanto, não precisariam ser salvos.
Deixe seu comentário