Jamil Chade

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Reportagem

Bíblia, censura e superpoderes a Trump: o plano da extrema direita nos EUA

"Uma segunda revolução americana". Foi assim que um plano de poder desenhado por mais de uma centena de aliados e ex-funcionários do governo de Donald Trump passou a ser considerado.

Chamado de Projeto 2025, o documento com 920 páginas descreve ações concretas para, na prática, refundar o estado americano. A iniciativa é a concretização do esforço da extrema direita para estabelecer sua visão de governo e de sociedade. Os autores não escondem: esperam que as propostas façam parte de um eventual novo governo Trump, caso o republicano vença as eleições na próxima semana.

A ideia começou a ganhar forma em 2022, quando a entidade ultraconservadora Heritage Foundation reuniu mais de cem organizações, entre elas algumas instituições que fazem campanha contra direitos de LGBTQI+ ou contra qualquer ação para garantir direitos reprodutivos. Pelo menos uma delas ainda mantém uma estreita cooperação com o bolsonarismo, com a senadora Damares Alves e outros movimentos de extrema direita pelo mundo.

Russell Vought foi peça central na articulação. Ele se qualifica como um "nacionalista cristão" e comanda o Centro para a Renovação da América. Ele é apontado como sendo a pessoa que, nos bastidores, estaria redigindo ordens executivas, regulamentos e memorandos que estabeleceriam as bases para uma ação rápida de um futuro governo de extrema-direita.

Diante de uma lista de polêmicas, Trump tentou se distanciar do projeto e dizer que não estava envolvido. Mas pelo menos 140 dos convidados a pensar o futuro dos EUA tinham trabalhado com Trump e, no documento, sugerem uma restruturação radical do governo americano.

Nesta semana, a democrata Kamala Harris também insistiu em apontar como o projeto é uma espécie de plano de governo de Trump.

De forma detalhada, o documento traz uma longa lista para rever praticamente todos os aspectos da sociedade, incluindo imigração, aborto, liberdade de expressão e Justiça. Inconstitucionais, as propostas ainda falam na concentração de poder para o presidente e esvaziar a independência de agências estatais, inclusive aquelas que alertam para o impacto das mudanças climáticas ou o FBI.

O que diz o projeto

CENSURAR DISCUSSÕES CRÍTICAS NAS SALAS DE AULA

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Censurar discussões acadêmicas sobre raça, gênero e opressão sistêmica, e cortar o financiamento federal para escolas com currículos que abordem estes assuntos. Pelo projeto, os pais teriam controle sobre a escola, sob a alegação de que existe uma "doutrinação política inadequada" das crianças americanas.

A pornografia seria banida, e as empresas de tecnologia que permitirem o acesso seriam fechadas.

O documento ainda traz uma lista de termos que deveriam ser banidos de leis federais, como "orientação sexual", "igualdade de gênero", "aborto" e "direitos reprodutivos".

Fica ainda estabelecido o fechamento do Departamento de Educação, acusado de manter burocratas que "injetam programa anti-americana nas salas de aula".

A BÍBLIA COMO BASE DAS FAMÍLIAS

O plano prevê adotar leis que significariam um repressão contra pessoas transgênero, ameaçando processar as escolas que protegem os direitos dos estudantes transgênero ou dizendo aos hospitais que perderiam o financiamento se prestassem cuidados médicos.

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O documento sugere que o Departamento de Saúde e Serviços Humanos deve "manter uma definição de casamento e família baseada na Bíblia".

Apoio para a infância ainda deve estar vinculado com a ideia de que pais se "comprometam a se casar", enquanto projetos devem ter "o casamento como norma".

Sem mencionar a fonte, o documento também insiste que "informes das ciências sociais" indicam os benefícios de crianças criadas em casas heterossexuais e "com casamentos intactos".

"Todas as outras formas de família envolvem níveis mais altos de instabilidade (a duração média dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo é a metade da duração dos casamentos heterossexuais); estresse financeiro ou pobreza; ou resultados comportamentais, psicológicos ou educacionais piores", afirma o plano.

"Para o bem-estar da criança, os programas devem afirmar que as crianças precisam e merecem tanto o amor e a nutrição de uma mãe quanto a diversão e a proteção de um pai", insiste.

Para o plano, os subsídios de programa sociais "devem estar disponíveis para beneficiários baseados na fé que afirmam que o casamento não é apenas entre dois adultos quaisquer, mas entre um homem e uma mulher sem parentesco".

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LIMITAR O ACESSO AO ABORTO

Limitar o acesso ao aborto em todo o país, além de impedir o uso do já aprovado remédio mifepristona, utilizado para encerrar uma gravidez. Outra proposta é recuperar uma lei do século 19, a Lei Comstock, para proibir o envio de quaisquer medicamentos, equipamentos ou materiais de aborto através dos Correios.

Nas 920 páginas, existem mais de 200 referência ao aborto, inclusive a criação de um banco de dados sobre as gravidezes nos EUA. Para Kamala Harris, o projeto criaria um "monitoramento nacional da gravidez de cada uma das americanas".

DEPORTAÇÕES EM MASSA

A ação do governo para realizar deportações em massa, acabar com a cidadania por nascimento, separar famílias e desmantelar o sistema de asilo.

O estabelecimento de uma mega operação militar na fronteira e o aumento do financiamento para a construção do muro na fronteira entre os EUA e o México, além do desmantelamento do atual Departamento de Segurança Interna.

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Ficaria também eliminada a lei que permite vistos para estrangeiros que sejam vítimas de crimes ou de tráfico humano, além de um aumento importante das taxas administrativas para imigrantes, inviabilizando o pagamento para milhares de estrangeiros.

SUPERPODERES AO PRESIDENTE E PROIBIR FBI DE INVESTIGAR DESINFORMAÇÃO?

Aprovação de leis para retirar a autonomia de agências do estado e colocando-as sob o poder do Executivo.

O documento inclui estratégias para a implementação de políticas imediatamente após a posse presidencial em janeiro de 2025, como a criação de um banco de dados de conservadores leais para ocupar cargos no governo.

A instrumentalização do Departamento de Justiça também seria um objetivo, assim como do FBI.

"O FBI está completamente fora de controle. Para proteger a Constituição, combater o crime de forma eficaz e proteger a nação de adversários estrangeiros, a próxima administração conservadora deve começar a restaurar a reputação e a integridade doméstica do FBI e aumentar sua eficácia no enfrentamento de ameaças estrangeiras reais", diz.

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Para isso, a próxima administração conservadora deve encerrar qualquer investigação que possa minar "o interesse nacional". O FBI também deve abandonar o trabalho de investigar a proliferação de desinformação.

USO INDEVIDO DA FORÇA CONTRA MANIFESTANTES

Aprovar leis que permitam o uso de forças policiais federais contra jornalistas e manifestantes. Pelo projeto, portanto, um presidente poderia enviar tropas contra americanos envolvidos em protestos. O presidente poderia também colocar forças armadas para reprimir marchas e manifestações.

Se existe uma tradição de proibir o envolvimento militar na aplicação da lei doméstica, existe uma exceção na Lei da Insurreição, originalmente promulgada pelo Congresso em 1792 e atualizada pela última vez em 1871.

Por essa lei, o presidente pode usar as forças armadas para "tomar as medidas que considere necessárias para suprimir, num Estado, qualquer insurreição, violência doméstica, combinação ilegal ou conspiração". Isso é raramente usado, diante da falta de controle por parte do Congresso. Agora, o Projeto 2025 facilitaria o uso da lei em resposta a protestos.

NEGACIONISMO CLIMÁTICO

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O projeto ainda fala abertamente no corte de verbas federais para pesquisa e investimento em energia renovável e pede que o próximo presidente "pare a guerra contra o petróleo e o gás natural".

As metas de redução de carbono seriam eliminadas e todos os esforços deveriam ser direcionados ao aumento da segurança energética.

O texto ainda critica os democratas por ter "incorporado políticas radicais de clima". "O governo Biden se juntou ou financiou parcerias internacionais dedicadas a promover os objetivos do Acordo Climático de Paris e apoiou a ideia de dar trilhões de dólares a mais em transferências de ajuda para "reparações climáticas", criticou.

"Sua agenda anti-combustível fóssil levou a um aumento acentuado nos preços globais de energia", atacou o plano, que ainda diz que é "falso" que mudanças climáticas causam pobreza.

NEUTRALIZAR O SENADO

Documento sugere neutralizar a função constitucional do Senado de aprovar nomes de pessoas indicadas para trabalhar no Poder Executivo. Para driblar o Legislativo, a proposta é de que o novo presidente apenas faça nomeações "interinas", o que dispensaria uma confirmação entre senadores.

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"O próximo governo pode precisar adotar uma nova abordagem para o processo de confirmações a fim de garantir uma transição adequada e rápida. da agenda do Dia Um", afirma.Também é recomendado que o novo governo "também deve procurar remover da exigência de confirmação os cargos de nível mais baixo, mas ainda assim importantes, que atualmente exigem confirmação do Senado".

Na prática, a proposta permitiria a tomada de agências e instituições do Executivo por pessoas leais ao governo.

Críticas: o fim dos EUA como o conhecemos

Se o Projeto 2025 abriu um intenso debate na sociedade dos EUA, coube ao Centro para o Progresso Americano uma avaliação aprofundada pelo plano. Suas conclusões apontam para os riscos de uma implementação de suas recomendações, caso Donald Trump vença as eleições.

"Muito simplesmente, se o Projeto 2025 for implementado, os Estados Unidos ficarão irreconhecíveis", disse o Centro. "Em vez disso, eles se assemelhariam a autocracias do mundo todo, como a Hungria e a Turquia, que, nos últimos anos, enfraqueceram seriamente suas democracias e investiram um poder desordenado em líderes autoritários que atendem aos interesses deles mesmos, não do público", alertou.

"O Projeto 2025 derrubaria as grades de proteção, incluindo o armamento do Departamento de Justiça dos EUA contra oponentes políticos e americanos comuns; a substituição de dezenas de milhares de funcionários públicos apartidários por leais à ordem do presidente", disse.

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O Projeto 2025 seria um "caminho plausível para que um governo de extrema direita, baseado em uma filosofia branca, nacionalista cristã, pró-corporativa e anti-trabalhista, degrade a democracia e promova metas políticas radicais que há muito tempo deseja realizar, mas que ainda não conseguiu implementar".

Para o Centro, trata-se de um "roteiro autoritário de uma minoria política em declínio e que tem como objetivo derrubar o sistema de freios e contrapesos".

"Se o Congresso for privado de seu papel imperativo de controle e equilíbrio do poder do presidente, e o Poder Judiciário estiver disposto a conceder ao presidente uma autoridade quase ilimitada, o resultado será a autocracia", completou.

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