Jamil Chade

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Reportagem

Após 25 anos, Mercosul e UE fecham maior parceria comercial do mundo

Num processo que durou um quarto de século e atravessou cinco presidentes brasileiros, o Mercosul e a União Europeia finalmente chegaram a um acordo para o estabelecimento da maior parceria comercial e de investimentos do mundo, envolvendo mais de 718 milhões de pessoas e um PIB conjunto de US$ 22 trilhões.

O pacto, porém, terá enormes dificuldades para ser ratificado pelo lado europeu, diante do protecionismo da França, da resistência de Itália, Holanda e Polônia e da fragilidade de alguns de seus principais cabos eleitorais, como a Alemanha.

O anúncio foi feito nesta sexta-feira (6), durante a cúpula do Mercosul, em Montevidéu. O pacto agora terá de passar por uma revisão legal e tradução, o que pode levar meses para ser realizado. Só então é que uma assinatura será feita.

Imediatamente, o governo da França indicou que o anúncio não muda sua postura crítica ao acordo e que a decisão anunciada nesta sexta-feira se refere apenas aos compromissos da Comissão Europeia, o braço executivo do bloco.

"A Comissão Europeia concluiu suas negociações com o Mercosul, o que é de sua responsabilidade, mas o acordo não foi assinado nem ratificado. Portanto, este não é o fim da história. O acordo com o Mercosul não entrou em vigor", declarou a presidência francesa. Segundo Paris, o tratado "continua inaceitável em sua forma atual".

Mas os ataques contra o presidente Emmanuel Macron não demoraram para surgir.

Para a maior entidade agrícola da UE, a COPA-Cogeca, o acordo envia uma "mensagem catastrófica para milhões de agricultores europeus". Segundo eles, o livre comércio "exacerbará as pressões econômicas às quais muitas fazendas estão sujeitas".

Para a Confederação de Agricultores, o francês "fracassou" em barrar o acordo, enquanto acusam a Comissão de ter "traído" os europeus. Para a ex-candidata socialista à presidência, Ségolène Royal, a decisão de fechar o acordo é "extravagante". Na Irlanda, agricultores anunciaram que vão manter os protestos contra o acordo, apesar de seu anúncio.

Atacada, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, chamou o dia de "um marco histórico". Para ela, que viajou até Montevidéu, o acordo é "ambicioso e equilibrado".

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"A relação entre o Mercosul e a Europa é uma dos mais fortes do mundo. É um laço ancorado na confiança e com séculos de aprendizagem mútua", disse. "Hoje, estamos fortalecendo essa relação como nunca antes", insistiu.

Mostrando seu distanciamento em relação à crise francesa, o chanceler alemão Olaf Scholz saudou o acordo, que trará "mais crescimento e competitividade". "Mais de 700 milhões de pessoas poderão se beneficiar de um mercado livre, mais crescimento e competitividade", declarou nas redes sociais.

Luis Lacalle Pou, presidente do Uruguai, afirmou que o tratado "não é apenas um intercâmbio comercial". "Não é uma solução mágica para a prosperidade. É uma possibilidade", disse o uruguaio, que preside o bloco sul-americano de forma temporária. "Num mundo tão convulsionado e onde as imagens são de conflito, essa imagem de hoje, aqui, é o que nos permite acreditar que a humanidade pode construir", disse.

Num comunicado, o governo brasileiro indicou que se trata do maior acordo comercial já concluído pelo Mercosul e uma das maiores áreas de livre comércio bilaterais do mundo.

Recado a Trump e aos nacionalismos

O ato também foi marcado por recados aos movimentos nacionalistas. "Estamos enviando mensagem clara e poderosa ao mundo. Primeiramente, num mundo com mais confrontos, demonstramos que as democracias podem se apoiar mutuamente", disse Von der Leyen.

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"Não é só uma oportunidade econômica, é uma necessidade política", afirmou a europeia. "Acreditamos na abertura e na cooperação como motores do progresso e da prosperidade. Sei que os ventos fortes sopram no sentido contrário, para o isolamento e a fragmentação. Mas esse acordo é uma clara resposta", disse, numa mensagem velada ao presidente eleito dos EUA, Donald Trump.

Desmatamento e críticas do Greenpeace

A europeia ainda insistiu que o pacto não abre mão das preocupações ambientais, um dos temas centrais da resistência de movimentos na UE contra o pacto. "Não estamos ignorando os nossos valores", garantiu. "Trata-se de um acordo para criar comunidades de valores compartilhados. O acordo é o primeiro passo para o Acordo de Paris e o combate ao desmatamento", insistiu.

Segundo ela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva "fez esforços" para proteger a floresta. "Mas essa defesa é uma responsabilidade compartilhada de toda a humanidade. O acordo garante que investimentos respeitem o patrimônio natural que o Mercosul tem", disse.

Uma das preocupações do Brasil se referia às novas leis europeias que, a partir de 2025, iriam punir exportações de locais que teriam sido alvo de desmatamento.

Por pressão do Itamaraty, o acordo prevê "mecanismos para lidar com eventuais impactos negativos de medidas unilaterais que possam afetar exportações do Mercosul. "Os dois blocos acordaram compromissos em matéria de desenvolvimento sustentável que adotam abordagem colaborativa e equilibrada, reconhecendo que os desafios nessa área são comuns e devem ser enfrentados de forma cooperativa", afirmou o governo brasileiro.

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Para a especialista em Política Internacional do Greenpeace Brasil, Camila Jardim, o acordo "estimula a importação de itens altamente poluentes e prejudiciais à saúde que não serão mais vendidos no mercado europeu no futuro próximo". "Na prática, esse acordo resultará em uma pressão pelo aumento do desmatamento, pois trocaremos commodities, muitas vezes advindas de áreas desmatadas, inclusive na Amazônia, pela importação de agrotóxicos, automóveis, motores a combustão e plásticos", alertou.

A entidade ainda questiona os ganhos para os exportadores agrícolas nacionais. "Os possíveis ganhos dos grandes agropecuaristas não serão recompensados à altura da devastação e do desequilíbrio dos nossos ecossistemas", disse.

O que o Brasil ganha e onde cede

Pelo pacto, o Brasil conseguiu eliminar tarifas para bens como etanol, açúcar e carnes no mercado europeu, ainda que tenha de respeitar uma cota modesta. Do lado europeu, o pacto permite maior acesso ao Mercosul para seus bens industriais e automóveis —uma ambição da Alemanha— assim como itens específicos, como vinho, e facilidades para investimentos.

Depois de uma dura negociação, o Brasil ainda conseguiu preservar áreas estratégias para seu projeto de reindustrialização, como no setor de remédios e saúde e na preservação de pequenas e médias empresas. No campo de licitações públicas, o acordo prevê uma certa proteção para a indústria nacional nesses segmentos.

Uma das preocupações era que as compras públicas do SUS não fossem tomadas pelos europeus, abalando a balança comercial.

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"De forma inovadora, o acordo abre oportunidades de comércio e investimentos sem comprometer a capacidade para a implementação de políticas públicas em áreas cruciais como saúde, desenvolvimento industrial e inovação", afirmou o Itamaraty, num comunicado. "Sob a orientação do presidente Lula, o texto do acordo anunciado hoje assegura a preservação de espaço para políticas públicas em compromissos sobre compras governamentais, comércio no setor automotivo e exportação de minerais críticos", disse.

Resistência para ratificação

Para que o texto entre em vigor, porém, negociadores admitem que o processo pode levar meses ou até anos. A maior dificuldade é garantir uma maioria do Conselho da Europa, com seus 27 membros. Após essa etapa, o acordo ainda precisa ser aprovado pelo Parlamento Europeu.

França, Holanda e Polônia já anunciaram que tentarão se opor e criar uma aliança com Itália e outros governos contrários ao que foi negociado pela Comissão Europeia. Mas Alemanha, Espanha, Portugal e os países escandinavos pressionarão por um pacto.

Para o presidente Emmanuel Macron, um acordo pode ampliar a insatisfação da opinião pública francesa e dar forças para a extrema direita, que se apresenta como a defensora dos agricultores. Os ecologistas também hesitam, enquanto a esquerda busca se legitimar diante de trabalhadores cada vez mais frustrados.

Negociadores do Mercosul, porém, acusam os governos europeus de manipular o bloco sul-americano e apresentá-lo como um bode expiatório para problemas domésticos de falta de produtividade.

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A Comissão Europeia chegou a ensaiar a ideia de submeter aos governos europeus o acordo em duas partes. A primeira seria política, onde não haveria resistência e ele poderia ser aprovado. A segunda parte seria comercial. Mas governos europeus já alertaram que não aceitarão fatiar o pacto.

Von der Leyen, nesta sexta-feira, insistiu em defender o acordo aos europeus, insistindo que os benefícios serão sentidos em ambos os lados do Atlântico. Segundo ela, 60 mil empresas exportadoras da UE poderiam ganhar.

A presidente da Comissão ainda garantiu que está "consciente" das preocupações dos agricultores europeus. Mas insistiu que o pacto conta com "salvaguardas robustas".

O pacto, segundo ela, vai poupar 4 bilhões de euros para as empresas europeias. "Esse é um bom dia para o Mercosul, para a UE. É um bom dia. Toda uma geração trabalhou para isso", afirmou.

Acordo estratégico

Apesar dos contornos de proteção, o acordo é considerado como estratégico e um passo geopolítico fundamental. De um lado, ele garante a sobrevivência do Mercosul, que vive um ataque por parte de Javier Milei. O argentino quer a transformação das regras fundadoras do bloco para permitir que Buenos Aires possa fechar acordos comerciais com quem bem entender. Na prática, isso enfraqueceria o Mercosul.

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Outro aspecto do pacto é enviar ao mundo a mensagem de que sul-americanos e europeus se apresentam como contraposição ao nacionalismo protecionista de Donald Trump.

Para a Europa, o acordo é ainda uma esperança de poder competir com a China na América do Sul, continente que hoje tem uma relação comercial maior com Pequim que com seus antigos colonizadores.

Um quarto de século de diplomacia e polêmicas

Iniciado em 1999, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, na cúpula do Rio entre América Latina e Europa, a negociação tinha como objetivo ser um contraponto ao projeto de criação de uma área de livre comércio das Américas, a Alca, que jamais chegou a um acordo.

Naquele momento, a China era um ator menor no comércio mundial, smartphones não existiam e a extrema direita nacionalista era uma aberração política reservada a grupos obscuros e irrelevantes.

Os europeus, porém, optaram por manter a ideia de uma aproximação comercial com o Mercosul. Mas, por anos, o projeto esbarrou no protecionismo agrícola europeu e na recusa de Brasil e Argentina em dar privilégios ainda maiores para os produtos da UE.

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Um acordo esteve prestes a ser fechado em 2006, na primeira gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas acabou fracassando diante da percepção dos brasileiros de que as cotas oferecidas ao Brasil pelos europeus eram insuficientes. Nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer, o processo também chegou perto de um acordo.

Mas foi Jair Bolsonaro que, na esperança de mostrar uma suposta vitória diplomática, anunciou o pacto. O que o ex-presidente brasileiro havia aceitado era menos —em termos de acesso ao mercado europeu— que o volume de cotas para açúcar, carne e etanol que o Brasil havia rejeitado em 2006.

Em troca de um acesso modesto, Bolsonaro abriu o mercado nacional para que as empresas europeias pudessem concorrer em licitações públicas no setor de saúde e educação, num mercado bilionário.

Nos bastidores, os europeus celebraram e se apressaram por um entendimento, considerando que tinham extraído do Brasil um pacto muito mais favorável a eles do que poderiam jamais imaginar.

Mas, nos meses seguintes, Bruxelas descobre que o protecionismo agrícola poderia ser mais forte que o acordo. Se a França resistia a um pacto e por anos buscou argumentos para justificar seu protecionismo, o desmatamento promovido por Bolsonaro caiu como uma luva. Paris, agora, tinham um argumento perfeito para rejeitar o acordo.

Ao longo de seus quatro anos na presidência, Bolsonaro jamais conseguiu convencer os parceiros europeus a ratificar o que ele havia cedido.

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Lula assume e exige revisão do acordo de Bolsonaro

Com a vitória de Lula e o início de seu governo em 2023, a esperança era que o projeto pudesse ser retomado. Mas o Brasil exigiu uma revisão dos pontos cedidos indevidamente por Bolsonaro, o que acabou ocorrendo.

O SUS foi preservado, assim como o setor de compras governamentais em segmentos sociais, como alimentos e educação.

O processo quase entrou em colapso depois que europeus sinalizaram que exigiriam compromissos ambientais, com punições e elevações de tarifas. O Brasil acusou Bruxelas de "colonialismo verde", o mal-estar se instalou e o processo parecia ameaçado.

Ainda que as exigências ambientais continuem no pacto, a UE teve de ceder à ideia de impor multas. Um meio-termo foi encontrado, diante da necessidade de um acordo.

Para muitos, trata-se do último acordo nos modelos do século 20, que dificilmente será repetido pelos europeus nos próximos anos.

Reportagem

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