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Jeferson Tenório

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Que tiro foi esse?

4.fev.22 - Bolsonaro e o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro - Luis Fortes/MEC
4.fev.22 - Bolsonaro e o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro Imagem: Luis Fortes/MEC

Colunista do UOL

16/05/2022 04h00

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O tiro acidental dado pelo ex-ministro Milton Ribeiro no aeroporto de Brasília é a cereja do bolo, ou a síntese nefasta da ideologia bolsonarista.

Num aeroporto internacional, no Brasil, um homem negro dirige-se ao guichê para fazer o check-in e despachar as malas. É um dia comum. Entretanto, em dado momento, este mesmo homem negro abre uma pasta, passa cerca de cinco minutos mexendo nela, até que de repente uma pistola dispara acidentalmente de dentro dessa pasta. O tiro fura o coldre, a pasta e ricocheteia no chão.

Uma funcionária de uma das empresas aéreas é ferida pelos estilhaços. Por alguns instantes há uma perplexidade em volta. Em menos de dois minutos, este homem negro é cercado por seguranças e policiais do aeroporto. Pessoas começam a gritar em pânico. Armas são apontadas para este homem que diz que o tiro foi acidental, que ele já foi ministro da educação. No entanto, nada do que ele diga parece demover os policiais a baixarem as armas. Mandam-no colocar as mãos na cabeça. Um dos agentes dá voz de prisão. O homem negro é derrubado no chão por três policiais, mesmo que ele não tenha oferecido qualquer resistência. Um deles coloca o joelho em seu pescoço enquanto outro põe suas mãos para trás e o algema. O homem negro é levado para delegacia sob gritos de bandido.

A cena descrita acima é, na verdade, um exercício de especulação, mas que infelizmente está muito próxima da realidade. Em abril deste ano, o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro disparou acidentalmente uma pistola em pleno aeroporto de Brasília. Até onde se sabe o ex-ministro não foi tratado com hostilidade. Apenas foi questionado por portar uma arma e encaminhado para delegacia. Lá explicou que o tiro foi acidental. Depois de prestar seu depoimento, o ex-ministro foi liberado. Milton Ribeiro é um homem branco.

Nesta coluna de estreia, gostaria de tecer algumas reflexões sobre esse episódio e a relação que o governo Bolsonaro estabeleceu com a educação. Os ataques ao sistema educacional, como se sabe, são a marca registrada do atual governo. Estamos diante de um projeto consciente e perverso de destruição. O tiro acidental dado pelo ex-ministro Milton Ribeiro no aeroporto é a cereja do bolo, ou a síntese trágica e nefasta da ideologia bolsonarista. Uma educação que se pretende armada talvez seja o nosso maior fracasso enquanto nação. Mais do que isso, fracassamos enquanto pessoas. Fracassamos como brasileiros.

No entanto, gostaria de lembrar de um outro Milton: Milton Santos, que é bem mais interessante. O geógrafo costumava dizer que no Brasil não há democracia, mas um ensaio democrático. Milton Santos tinha razão. Entretanto, os anos de sala de aula me deixaram mais pessimista. Porque penso que talvez não tenhamos nem um ensaio, mas apenas um rascunho democrático. Uma ilusão. Um risco. Uma garatuja. Uma brincadeira que resulta no aniquilamento das comunidades negras e indígenas. Um rascunho que cria delírios protofascistas como "Escola sem partido", ou equívocos sobre a ideia de "homeschoolling".

Não sei como podemos conceber um país democrático em que o racismo ainda é a base de nossa estrutura social. Não canso de repetir: não existe democracia com racismo. Assim como não pode existir uma democracia plena sem uma política educacional séria e que leve em consideração um compromisso intelectual e humano. O tiro no aeroporto poderia ter tido um desfecho trágico. Mas creio que estamos diante de uma grande metáfora deste governo que escolheu a violência, as armas e ódio como política de governo.

Como já se sabe, o ministério já passou pelas mãos de quatro ministros. Milton Ribeiro foi exonerado após ser flagrado em um áudio vazado, quando participava de um esquema ilegal de liberação de recursos, comandado por dois pastores, a pedido do presidente Jair Bolsonaro. A rotatividade e a inércia das políticas educacionais demonstram que a educação não é prioridade.

Além disso, os ataques aos professores, ao INEP, aos conteúdos do ENEM e as tentativas de censura relacionadas às discussões de gênero e sexualidade (outro delírio fascista) trazem à tona um cenário sombrio e que deixará marcas por muitos anos. A educação no Brasil sempre foi tardia e excludente. Aliado ao discurso de ódio e bélico em que armas são mais importantes que livros, era até previsível que um ex-ministro da educação fosse pego com uma pistola em um aeroporto de Brasília.

Mas nem tudo é arma e lama. Se por um lado temos esse projeto bolsonarista de destruição da educação, por outro, há educadores, professores, diretores de escolas e prefeituras que agem para transformar este rascunho democrático, num desenho feito com afeto, livros e cultura. A boa notícia é que governos passam, mas os professores ficam, as obras literárias permanecem, a arte perdura e o sol há de brilhar mais uma vez.