Prioridade de Bolsonaro é sair do Mundo da Lua
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O lema do governo na pandemia poderia ser o seguinte: Divagar e sempre. Afinal, Bolsonaro está sempre divagando. Com o vírus a pino, declarou na sua penúltima divagação que a "pressa para a vacina não se justifica". Chamou de "pequeno repique" uma elevação no nível de contágio que aproxima a contabilidade dos mortos por Covid da marca de 200 mil.
É uma pena que o capitão não cultive o hábito da leitura. Poderia sair das redes sociais por um instante para degustar um conto de Ernest Hemingway. Chama-se 'As Neves do Kilimanjaro'. Começa com um esclarecimento:
"Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África", escreveu Hemingway. "O seu pico ocidental chama-se 'Ngàge Ngài', a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude."
O leopardo do conto serve de metáfora para muita coisa. Tanto pode simbolizar a busca romântica pelo inalcançável como pode representar o espírito de aventura levado à extrema inconsequência. A Presidência, como se sabe, é o cume da política. Num instante em que o mundo anseia pela vacinação, Bolsonaro deveria fazer uma pergunta aos seus botões: por que cheguei ao ponto mais alto do Poder Executivo?
O Brasil vive uma época de faltas: falta de vacinas, de empregos, de dinheiro, de diálogo, de planejamento, de serenidade, de juízo. O país vive, em contrapartida, uma época de excessos: excesso de cloroquina, excesso de ansiedade, excesso de dívidas, excesso de polarização, excesso de improvisação, excesso de insensatez.
A intensificação desses fatores —ou a incidência difusa de todos eles— deixa o brasileiro cada vez mais distante dos estímulos que empurram a vida para algum lugar parecido com a normalidade. O problema se torna mais grave quando o presidente da República não se mostra capaz de oferecer respostas à altura dos desafios que o assediam.
Bolsonaro e seus devotos escolheram atravessar a pandemia no mundo da Lua, onde não ecoam as críticas. O presidente encantou-se com o Datafolha que lhe atribuiu 37% de avaliações positivas. Sem vacinas, recorre a uma assepsia lunática: lava as mãos, borrifa álcool a 70% nas próprias vestes e risca o fósforo, ateando polêmicas na conjuntura.
"A pandemia está chegando ao fim", disse o presidente em entrevista ao filho Eduardo Bolsonaro. "Estamos com uma pequena ascensão agora, o que chama de um pequeno repique, pode acontecer. Mas pressa para a vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas. Vai inocular algo em você e seu sistema imunológico vai agir de forma imprevista."
Já se sabia que Bolsonaro brigou com a chamada Lei Covid, que ele mesmo sancionou em fevereiro, prevendo coisas como a vacinação compulsória. Mas espera-se que o presidente respeite pelo menos a lei da gravidade, reaprendendo que as encrencas sempre caem na cabeça de quem se coloca embaixo delas.
As declarações de Bolsonaro indicam que não será fácil recolocar os pés dele na Terra. Seu alheamento atingiu um grau que roça o delírio. Dedica-se à defesa do direito de infectar e à desqualificação das vacinas. A CoronaVac é comunista. A da Pfizer faz virar jacaré. Mais um pouco e o presidente anunciará a criação do MSV, o Movimento dos Sem Vacina.
Paulo Guedes declarou na sexta-feira que a vacina é "o capítulo mais importante" da crise. Confraternizando-se com o óbvio, o ministro da Economia afirmou: "O retorno seguro ao trabalho exige a vacinação em massa da população brasileira." Antes do ministro, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, já havia declarado que investir em vacina sai mais barato do que prorrogar auxílios do governo.
Guedes e Campos Neto deveriam pedir uma audiência conjunta com o chefe. Ou inoculam no cérebro do capitão o vírus da racionalidade ou, no futuro, quando os arqueólogos forem escavar esse pedaço da história nacional, encontrarão sob os escombros de um Brasil remoto, perdida em meio a esqueletos de gente que morreu por falta de vacina, a carcaça de um presidente tão inexplicável quanto o leopardo de Hemingway. E todos se perguntarão: O que fazia ele no ponto mais alto do Executivo?
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