Josias de Souza

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Fala de Bolsonaro acendeu pavio de Cid: 'Cada um siga a sua vida'

O direito de propriedade sobre uma frase é obrigatoriamente compartilhado. As palavras são metade de quem as pronuncia, metade de quem as escuta. No trajeto entre o emissor e o receptor, o significado de uma fala por vezes se altera. Na origem da conversão de Mauro Cid em delator está um comentário de Bolsonaro.

Familiarizado com o drama do ex-ajudante de ordens, um amigo contou à coluna que a fala que acendeu o pavio de Cid foi pronunciada por Bolsonaro em 18 de maio, na saída de uma visita surpresa ao primogênito Flávio, no Senado. Avesso a repórteres, naquele dia o capitão buscou os microfones.

Em meio a menções elogiosas à carreira militar de Mauro Cid, Bolsonaro disse aos repórteres: "Ele fez o melhor de si. Peço a Deus que ele não tenha errado. E cada um siga a sua vida". Filtrando os elogios, Cid interpretou o comentário como um risco no chão. Bolsonaro demarcou uma fronteira. De um lado, a suspeição que levara o ex-faz-tudo à prisão. Do outro, um ex-presidente com pose de limpinho.

Preso numa sala do Quartel-General de Brasília havia 15 dias, Cid exibia uma serenidade que destoava da deterioração de sua condição penal. Havia sinalizado nos subterrâneos que não implicaria o ex-chefe. Silenciara no primeiro interrogatório da Polícia Federal sobre a falsificação de cartões de vacina, entre eles o de Bolsonaro e de sua filha.

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Cid tornara-se um ávido consumidor de notícias. Sua cela especial dispunha de televisão. Aborrecera-se dias antes com o fragmento de uma entrevista concedida pelo advogado Rodrigo Roca, que havia contratado logo que foi preso. Ligado à família Bolsonaro, Roca soara como defensor do alheio. Em timbre categórico, dissera que não houve "qualquer intervenção por parte do presidente Bolsonaro" no caso da fraude dos cartões de vacina.

Nas pegadas do comentário enviesado de Roca, assumiu a defesa de Cid o advogado Bernardo Fenelon, um especialista em delação. A troca ocorreu uma semana antes de Bolsonaro declarar que cada um deveria seguir a sua vida. Com a prudência embaçada pelo instinto de sobrevivência, o capitão ignorou o recado embutido na troca de advogado. Os humores do tenente-coronel haviam azedado.

Restava saber a que temperatura ferveria o sangue frio do preso. O ponto de ebulição foi atingido em 11 de agosto, quando os rapazes da Polícia Federal acordaram o pai de Cid, o general Mauro Lourena Cid, munidos de um mandado de busca e apreensão emitido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.

Quando se imaginava que Bernardo Fenelon manejaria seu apreço por delações para promover uma guinada na estratégia de Cid, o doutor abdicou da defesa. Retirou-se da causa em silêncio. Nos bastidores, disseminou-se a versão segundo a qual Fenelon enxergou na evolução das investigações uma quebra de confiança, pois desconhecia os novos achados da PF sobre o envolvimento do seu cliente e do pai dele na venda e recompra de presentes de luxo que Bolsonaro recebera quando era presidente.

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Terceiro defensor de Mauro Cid, o advogado Cezar Bitencourt estreou com um vaivém declaratório que tonteou Bolsonaro. Primeiro, insinuou que Cid confessaria sua participação na venda das joias da União nos Estados Unidos. Diria que cumpriu ordens de Bolsonaro. Chegou a atribuir uma frase categórica ao ex-presidente: "Resolva esse negócio e venda". Depois, recuou para uma versão aguada. Cid admitiria apenas a venda de um Rolex. A certeza quanto à participação de Bolsonaro virou um ponto de interrogação.

Em público, Cezar Bitencourt tratava a hipótese de delação de Cid como "Plano B". Na última quarta-feira, o suposto plano de contingência virou um pedido formal de colaboração premiada. Endossada pela Polícia Federal, a proposta de delação foi avalizada também por Alexandre de Moraes neste sábado, apenas três dias depois de ter sido entregue no seu gabinete.

Em seu despacho, Moraes presenteou Cid com a liberação da cadeia. Solto na tarde deste sábado, o militar arrastará uma tornozeleira eletrônica em casa. Moraes anotou: "No atual momento procedimental, o encerramento de inúmeras diligências pela Polícia Federal e a oitiva do investigado, por três vezes, e após ser decretada sua incomunicabilidade com os demais investigados, apontam a desnecessidade da manutenção da prisão preventiva".

A referência de Alexandre de Moraes às três oitivas de Mauro Cid não foi gratuita. Nessa trinca de depoimentos, mantidos em estratégico sigilo, o ex-ajudante de ordens falou por mais de 24 horas. No dia do terceiro interrogatório, sobre o caso das joias, o capitão e sua mulher, Michelle Bolsonaro, seriam espremidos separadamente em interrogatórios simultâneos. Optaram pela fuga.

Desorientados pelo desconhecimento do teor das revelações de Cid e orientados pelos advogados, Bolsonaro e Michelle evitaram entregar à PF matéria prima para o contraponto. Preferiram exercer o direito que a Constituição concede aos encrencados de não se autoincriminar.

Ao notar que Mauro Cid tomou ao pé da letra o seu conselho —"Cada um siga a sua vida"—, Bolsonaro trancou-se em seus rancores. Esforça-se para manter a pose de vítima de perseguição política. Mas a nova conjuntura roubou-lhe o papel que exercia com maior desenvoltura e talento: o de colocar a culpa nos outros.

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A PF e Moraes não apostariam na delação de Mauro Cid se não enxergassem nos desdobramentos dos três depoimentos mais recentes do personagem material para fabricar a chave que trancafiará Bolsonaro numa cela.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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