Por trás do apagão de São Paulo há a formação de uma quadrilha
As árvores cometeram vários crimes em São Paulo. O primeiro foi o de existir. Este poderia ser classificado como um crime menor. Seria uma contravenção tolerável se não passasse disso. Mas elas não se contentaram apenas com a existência. Passaram a existir em grande número. O crime tornou-se grave.
Em 3 de novembro de 2023, uma sexta-feira, 4,2 milhões de domicílios residenciais e comerciais ficaram sem energia elétrica em 27 municípios do Estado de São Paulo —2,1 milhões apenas na região metropolitana da capital. Para a maioria, o breu durou mais de 70 horas. Muitos ficaram à luz de velas por quatro ou cinco dias. Um acinte. O governador Tarcísio de Freitas foi ao ponto:
— O grande vilão desse episódio foi a questão arbórea.
A vilania não ficou restrita às árvores. Nicola Cotugno, presidente da Enel, a concessionária privada responsável pelo fornecimento de eletricidade na capital paulista e arredores, identificou um segundo culpado:
— Não é para nos desculparmos, não. O vento foi absurdo!
Nicola declarou que o vento soprou numa velocidade de 104 km por hora em alguns pontos da capital paulista. Realçou que, se chegasse a 120 km, já seria considerado um furacão.
Em conluio com a ventania, as árvores foram mais longe na sua vocação criminosa: converteram-se em vítimas. Morreram, num claro desafio à ordem. Abandonando qualquer tipo de escrúpulo, as árvores organizaram-se. De tocaia, só para aparecer mais, tombaram sobre a fiação elétrica. Tarcísio acusou:
— Foi questão da quantidade de árvores que, por falta de manejo adequado, acabaram caindo sobre a rede.
Para que não restasse dúvida, Nicola quantificou as árvores que desafiaram as autoridades, caindo por entre os postes:
— De 1.400 [que caíram na cidade], umas mil [feneceram sobre os fios]. Mobilizamos todas as equipes. Ficamos no centro de controle para estabilizar o atendimento. Trabalhamos noite adentro.
Organizando-se, as árvores pisotearam, por assim dizer, uma velha tradição das autoridades brasileiras: o deixa-pra-lá. No Brasil, nenhum problema é tão grande que não caiba no dia seguinte. Mas a vileza arbórea forçou as autoridades a fazerem alguma coisa. Nem que fosse uma cara de nojo. O velho deixapralaísmo nacional perdeu o nexo.
Ciente de que a melhor maneira de fugir do instinto criminoso das árvores seria enterrar os fios, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, saiu-se com uma solução emergencial, No terceiro dia de breu, ele disse que cogitava a criação de uma taxa para financiar o enterramento da fiação elétrica. Houve grande estrépito.
As árvores não falam. Mas o homem possui o gênio da palavra. De um prefeito paulistano não se exige que fale a língua de Dante, de Goethe ou de Shakespeare. Porém, a língua de Camões Ricardo Nunes precisaria falar com clareza.
Desnorteado pela conspiração das árvores com os ventos, o prefeito descobriu da pior maneira que, na administração pública, como na vida, a fronteira entre o improviso e a imprudência é muito tênue. Menos de 24 horas depois de jogar a contribuição no ventilador, Ricardo Nunes declarou que não haveria hipótese de impor semelhante suplício aos paulistanos.
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Quero receberO prefeito esclareceu que sua ideia seria estimular os moradores da capital a se cotizarem voluntariamente para enterrar os fios por conta própria. Se os moradores de uma determinada rua ou região da cidade se animassem a colocar a mão no bolso, a prefeitura participaria da vaquinha.
A poda das árvores é uma responsabilidade do município. O contribuinte financia o serviço. Em 2023, o município de São Paulo reservou para a manutenção de áreas verdes e vegetação na cidade R$ 328 milhões. É mais do que os R$ 289 milhões gastos no ano passado.
Quando os galhos roçam a fiação, a concessionária de energia também pode realizar a poda. O preço está embutido na conta. O diabo é que as árvores fizeram uma opção criminosa pela existência exorbitante, forçando Nicola, o doutor que comanda a Enel, a realizar exibições públicas de malabarismo verbal:
— A [rede elétrica] de São Paulo é 98% aérea. É uma rede construída de forma econômica, então, foi uma boa decisão. No deserto, esse tipo de rede é segura, mas onde há árvores, com muita chuva e vento, ela fica exposta a danos —e São Paulo é uma cidade verde. Isso é maravilhoso, mas é preciso cuidar das árvores e da rede aérea. No ano passado, podamos 350 mil árvores. Esse é um trabalho anual. Mas agora, temos que fazer um debate sobre a mudança climática. Em 2021, faltou água em todo país, agora temos muita água e muito vento.
Na opinião de Nicola, a vaquinha para enterrar os fios não pode ser municipal, mas nacional:
— É preciso um olhar diferente. Já há discussões sobre possíveis ações, entre elas, enterrar a rede. Mas é uma decisão muito forte, que demanda coordenação, investimentos e tempo. A rede de São Paulo tem mais de 40 mil quilômetros. Inúmeras vezes se falou em enterrar os fios, mas não se chega a consenso de quanto vai custar nem de quem vai pagar. Por isso tem que ser um projeto de país, com custos compartilhados.
Tarcísio de Freitas cuidou de amenizar a inépcia coletiva. Disse que, muitas vezes, as prefeituras arrostam dificuldades para fazer o manuseio dos galhos. Segundo ele, há "inadequação de árvore por porte, de acordo com a via e localização das redes". Vítima da mesma dificuldade do prefeito de lidar com o português, o governador enfiou na sua prosa uma expressão da língua inglesa:
— É uma questão que a gente vai estruturar. Vamos pegar o benchmark [referência] de outros Estados que aprovaram legislações, como o Paraná, que ajudam o prefeito nesse manejo.
A solução, segundo Tarcísio, seria o envio à Assembleia Legislativa de um projeto de lei para disciplinar o corte das árvores.
O serviço de energia elétrica é uma concessão da União. Em 1996, criou-se a Aneel, Agência Nacional de Energia Elétrica. É uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Deveria fiscalizar os contratos de concessão, cobrando eficiência dos prestadores privados do serviço. Levada ao balcão, politizou-se. Sob Bolsonaro, foi terceirizada ao centrão.
Em São Paulo, a Aneel delegou a fiscalização, por convênio, à sua congênere estadual. Chama-se Arsesp, sigla da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo.
No Brasil, como se sabe, a iniciativa privada e o Estado consideram-se isentos de falhas. Governadores e prefeitos são infalíveis. Agências reguladoras, federais ou estaduais, exibem competência inexcedível.
O único crime cometido por empresas como a Enel é o excesso de eficiência. Nicola Cotugno produziu um tipo sui generis de autoanálise, uma autocrítica a favor:
— Chegará um tempo em que se avaliará as dificuldades que nós enfrentamos. Não teve negligência nossa. Não é para nos desculparmos, não. Foi algo excepcional. Quando chega um furacão no Texas, o problema não é a empresa elétrica, é o furacão. Aqui, estamos acostumados com eventos menores. Mas, se olharmos de uma forma racional e não emocional, a gente está fazendo um trabalho incrível por um fenômeno pelo qual não tivemos controle.
Resta investigar o conluio que uniu as árvores e o vento na sabotagem aos consumidores de energia do maior e mais próspero estado da federação. Se a investigação for levada às últimas consequências, decerto serão identificados outros cúmplices invisíveis —os cupins e fungos, por exemplo.
A julgar pelo excesso de eficácia da concessionária privada e pelas inexcedíveis boas intenções das autoridades, não há mais dúvidas. O que desligou São Paulo da tomada foi um apagão fitossanitário decorrente da formação de uma quadrilha arbóreo-climática. Polícia nas árvores.
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