Josmar Jozino

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Versão policial sobre 26 mortes em Varginha é fictícia, diz delegado da PF

A versão de policiais rodoviários federais e policiais militares de Minas Gerais sobre as circunstâncias das mortes de 26 homens na cidade de Varginha, em 31 de outubro de 2021, é uma ficção "previamente criada por eles para elidir a responsabilidade sobre os excessos cometidos".

A afirmação consta em detalhado relatório de 85 páginas sobre a investigação das mortes, assinado pelo delegado da Polícia Federal Carlos Henrique Cotta D'Ângelo. Ele indiciou 16 policiais rodoviários federais e 16 policiais militares de Minas Gerais por homicídio doloso (quando há intenção), tortura e fraude processual.

Os 26 mortos foram acusados à época de integrar um grupo de "novo cangaço", especializado em assaltos a bancos, que estaria preparando um ataque naquela região. As investigações do delegado apontam que aproximadamente 40 policiais entraram no sítio Recanto Dourado e mataram 18 indivíduos.

Na sequência, um grupo formado por 12 desses policiais foi para um segundo sítio, o Lagoinha, e lá matou outros oito suspeitos.

Nas duas ações, nenhum policial ficou ferido. Os dois locais ficavam em zona rural e não havia testemunha.

Na página 2 o delegado observa que "os fatos investigados, na forma como ocorreram e considerando o envolvimento dos personagens que dele participaram, não possuem precedentes na história nacional".

Segundo D'Ângelo, os depoimentos dos indiciados "constroem uma versão inverossímil para o que ocorreu naquela madrugada", quando os policiais alegaram que "participavam de uma ação para promover a prisão de suspeitos, mas foram recebidos a tiros e revidaram".

'Simularam uma batalha'

Os policiais afirmaram ter disparado 500 tiros. Peritos recolheram aproximadamente 300 estojos deflagrados. O delegado apurou que, desse total apreendido, 20 disparos foram atribuídos às armas que foram deixadas com os mortos "para simular uma batalha que jamais houve".

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O relatório diz ainda que os laudos periciais apontaram que não houve resistência dos suspeitos no sítio Recanto Dourado e eles foram baleados de trás para frente, nos membros superiores e inferiores. De acordo com o texto, os ferimentos foram compatíveis com lesões de defesa.

Os laudos indicaram ainda que, dos 26 mortos, 17 apresentavam pelo menos uma lesão "póstero-inferior". Esse termo sinaliza que os tiros atingiram os suspeitos pelas costas ou face posterior.

O documento assinado por D'Ângelo afirma que as armas longas atribuídas aos suspeitos no sítio Lagoinha, incluindo uma metralhadora ponto 50 capaz de derrubar aeronaves, foram introduzidas na cena do crime em momento posterior às mortes.

Local não foi preservado

Outro trecho do relatório diz que "todo profissional de segurança pública recebe treinamento para, em caso de se deparar com local de crime, preservar o ambiente".

Para o delegado D'Ângelo, "nos eventos de 31 de outubro de 2021, a prática foi dolosamente negligenciada e a preservação dos locais não só deixou de ser observada, como foi transgredida".

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As investigações de D'Ângelo concluíram que dois suspeitos foram detidos em um posto de combustíveis na cidade de Muzambinho às 2h53 de 31 de outubro.

Segundo o relatório da Polícia Federal, ambos foram levados para Varginha, onde acabaram torturados e mortos e depois os corpos foram misturados aos outros cadáveres no sítio Recanto Dourado.

Na página 32 consta que não houve efetivo socorro aos baleados e que o início do transporte dos feridos para hospitais demorou mais de 50 minutos. Câmeras de segurança flagraram um policial sentado sobre os corpos, na caçamba de uma caminhonete, chegando ao Hospital Bom Pastor.

Carlos Henrique Cotta D'Ângelo é, desde o mês passado, o novo superintendente da PF no Mato Grosso do Sul. Entre outras atribuições, ele terá como missão o combate ao crime organizado na região de fronteira com o Paraguai. O delegado já avisou: "Vim aqui para pegar ladrão".

O que diz a PRF

Em nota divulgada à imprensa, a Polícia Rodoviária Federal informou que a Corregedoria-Geral da instituição reabriu um procedimento apuratório em 2023 devido ao surgimento de novas evidências sobre o caso.

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A PRF reafirmou que "combateu um grupo criminoso dedicado à tomada de cidades para cometimento de ilícitos, prática de banditismo comumente conhecida como 'novo cangaço'".

A corporação diz que "na ocorrência, um farto armamento foi apreendido, sendo metralhadora .50, fuzis de grosso calibre, pistolas, dezenas de quilos de explosivos e grande quantidade de carregadores e de munições".

A PRF ainda destacou "o compromisso com os limites constitucionais e a defesa do Estado Democrático de Direito, incluídos o princípio da presunção de inocência dos agentes, a garantia ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa".

Já a Polícia Militar de Minas Gerais informou à imprensa que acompanha o inquérito relatado pela Polícia Federal e encaminhado às autoridades competentes.

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