Eduardo Bolsonaro foi em missão oficial ver argentino que mentiu sobre urna
Em meio ao disputado segundo turno das eleições de 2022, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) aproveitou uma missão oficial a Buenos Aires para se encontrar com o argentino Fernando Cerimedo, que se apresenta como consultor político.
Depois da derrota de Jair Bolsonaro (PL) para Lula (PT), Cerimedo fez um vídeo no YouTube com informações falsas sobre urnas eletrônicas, ajudando a inflamar o clima político no Brasil.
Cerimedo diz que agiu de forma independente para ajudar Bolsonaro e não recebeu nada por isso. Mas Eduardo fez pagamentos a um funcionário de uma das empresas de Cerimedo para trabalhar na campanha de reeleição do deputado no mesmo período.
É o que revela a investigação "Mercenários Digitais", que busca rastrear o negócio da desinformação na América Latina e detalha o papel de Cerimedo na divulgação de notícias falsas em campanhas de extrema direita no continente.
O projeto é uma parceria entre o UOL, a Agência Pública e outros 19 veículos de comunicação latino-americanos, quatro organizações especializadas em investigação digital e alunos de um curso de mestrado na Columbia University, sob a liderança do Centro Latinoamericano de Investigação Jornalística (Clip).
Eduardo Bolsonaro nunca divulgou publicamente o caráter oficial da viagem ou com quem foi se encontrar na Argentina. Os detalhes tampouco constam de sua prestação de contas no Portal da Transparência da Câmara dos Deputados.
No entanto, um documento do Itamaraty obtido pela aliança jornalística revela que o Ministério das Relações Exteriores do Brasil e a Câmara deram apoio institucional à viagem, em plena campanha de 2022. Procurado por meio de seus advogados, Eduardo Bolsonaro não retornou os contatos feitos pela reportagem.
A visita de Eduardo Bolsonaro ao país vizinho foi comunicada à Embaixada do Brasil na Argentina em ofício enviado em 10 de outubro do ano passado pela Secretaria de Estado de Relações Exteriores.
Classificado como "muito urgente", o documento relatou a missão oficial do filho do então presidente Jair Bolsonaro a Buenos Aires "para participar do Ciclo de Atividades para a Difusão das Ideias de Liberdade, entre 12 e 15 de outubro".
Publicamente, porém, Eduardo omitiu informações sobre a missão oficial. Segundo informações do Legislativo, Eduardo viajou à Argentina com o objetivo de "estreitar laços para alcançar o crescimento econômico sustentado (sic) da região".
Mas não foi bem isso que o deputado fez no país vizinho. Eduardo cumpriu plenamente uma agenda eleitoral.
Ele viajou à Argentina acompanhado de Giovanni Larosa, correspondente no Brasil do portal La Derecha Diário, veículo que pertence a Cerimedo. A reportagem conseguiu identificar, nas contas prestadas ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que Larosa recebeu dinheiro da campanha de 2022 de Eduardo Bolsonaro. Foi possível rastrear pelo menos R$ 3.900 em pagamentos.
Foi também pelo La Derecha Diário que Cerimedo, no dia 4 de novembro, após a derrota de Jair Bolsonaro, transmitiu um vídeo ao vivo, visto por mais de 400 mil pessoas, no qual divulgou um suposto dossiê com informações falsas sobre as eleições. A mensagem, desmentida pelo TSE, foi amplamente divulgada pelos aliados do ex-presidente para levantar suspeitas sobre os resultados.
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Quero receberO material reforçou o discurso golpista de Jair Bolsonaro, que ao longo de seu mandato tentou desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. Em 30 de junho de 2023, o TSE declarou o ex-presidente inelegível por oito anos.
Cerimedo já havia dito em entrevistas à mídia argentina que havia trabalhado para a campanha de Jair Bolsonaro em 2018. Mas ele afirmou que sua participação no vídeo de 4 de novembro de 2022 foi espontânea.
"Eu sou um herói para metade do país. Eles me chamam de argentino mais amado do Brasil", disse Cerimedo, com orgulho, durante uma entrevista de duas horas, por videochamada, a esta aliança jornalística.
O consultor político negou ter sido contratado pela campanha de Bolsonaro para fazer a transmissão ao vivo.
Ele disse que foi abordado por um amigo "que é um estudioso do Brasil e um fã de Bolsonaro" que suspeitava de erros na contagem dos votos. "Nem os militares nem ninguém do partido me contatou antes da transmissão. Eu não conseguia nem falar com o Eduardo", disse ele, apesar de já terem estado juntos semanas antes. Ele também negou ter recebido dinheiro pelo vídeo.
Promotor de desinformação diz que só um de seus veículos 'faz travessuras'
Parece que espalhar notícias falsas é parte do papel de Fernando Cerimedo. O portal de notícias La Derecha Diário, que faz parte do Grupo Madero Media, é uma forma de fazer isso. Esta investigação transnacional identificou que o consultor político usou estratégias semelhantes no Brasil, na Argentina e no Chile.
O argentino também é dono da Numen Publicidad, definida como uma agência de marketing digital que usa bots e "milhares de trolls" em campanhas negativas contra adversários, segundo disse o empresário em entrevista ao jornal La Nación.
O site da Numen informa que prestou consultoria política a 50 campanhas eleitorais na América Latina e nos Estados Unidos, "utilizando recursos tecnológicos exclusivos para posicionamento e comunicação de candidatos e governos, gestão e leitura da opinião pública".
Lá também consta que a firma tem escritórios em Buenos Aires, Santiago do Chile e São Paulo. A reportagem, porém, não identificou nenhuma empresa em nome de Cerimedo ou de seus sócios no Brasil.
Apesar de terem sido descobertas as mentiras publicadas no La Derecha Diário, o consultor nega ser produtor de fake news. "Chamar-nos de desinformadores em série por duas ou três bobagens é a única maneira de chegarem até nós. Sou contra as fake news", disse. "La Derecha Diário é o único dos meus veículos que faz travessuras", afirmou ele.
O que Eduardo Bolsonaro fez na Argentina
Eduardo, "filho 03" do ex-presidente Bolsonaro, desembarcou na capital argentina no dia 12 de outubro, onde ficou até o dia 15, duas semanas antes das eleições. Nesse período, se reuniu com lideranças da extrema direita do país, deu entrevistas à mídia local e gravou quatro vídeos para a campanha do pai, com o apoio de Fernando Cerimedo. Tudo foi registrado pelo La Derecha Diário.
Imagens em Buenos Aires mostram Eduardo Bolsonaro entrevistando pessoas na rua que reclamam da inflação e mandando mensagens a favor da reeleição de Jair Bolsonaro.
A estratégia era atingir os eleitores indecisos com o discurso de que o Brasil entraria em uma crise econômica semelhante à da Argentina caso Lula fosse eleito. O país terminou 2022 com 94,8% de inflação. Seu presidente, Alberto Fernández, é aliado do político do PT.
"Como seria o Brasil se o presidente fosse do PT? Seria parecido com a Argentina", escreveu o deputado na legenda de um dos registros da viagem, compartilhado em seu Instagram no dia 27 de outubro. Outros vídeos já haviam sido divulgados por ele em suas redes sociais nos dias 13, 15 e 16 e também foram compartilhados nas redes do La Derecha Diário.
Encontros para apoiar o pai e a extrema direita
Eduardo tentou esconder a informação de que viajava em missão oficial como representante do Brasil. A agenda do deputado na cidade, amplamente noticiada pelo La Derecha Diário, foi bem mais eleitoral.
O portal informou que Eduardo se reuniu na noite do dia 13 com lideranças de direita no país "com o objetivo de consolidar os diferentes espaços da direita e conseguir apoio comum ao maior líder da direita na região: Jair Bolsonaro". O encontro foi organizado por Fernando Cerimedo e sua esposa, Natalia Basil, diretora da Madero Media.
Em seu último dia na Argentina, o brasileiro tomou um café da manhã privado com o deputado e atual candidato à Presidência Javier Milei, a deputada Victoria Villarruel e Giovanni Larosa.
Segundo o La Derecha Diário noticiou à época, "eles falaram sobre a importância de a direita estar conectada no nível regional e como é vital que Bolsonaro seja reeleito".
Ainda segundo a nota do La Derecha Diário, foi Cerimedo quem patrocinou a viagem de Eduardo ao país vizinho.
O editor do portal e diretor-executivo da Numen Publicidad, Ezequiel Acuña, ficou encarregado de acompanhar e coordenar a agenda do político brasileiro. Mas, em entrevista ao Clip, Cerimedo negou o serviço: "Ninguém nos pagou e nós não pagamos nada", disse o consultor.
Em seu currículo, Acuña afirma ser um especialista em marketing político digital com experiência na Argentina, no Chile e no Brasil.
Ele e Cerimedo aparecem em um dos vídeos publicados por Eduardo Bolsonaro em Buenos Aires em campanha para o pai. A imagem, compartilhada em 13 de outubro, mostra os três caminhando pelas ruas de Buenos Aires acompanhados por uma equipe de gravação.
Dois dias depois, Eduardo Bolsonaro publicou outro vídeo na Argentina no qual aparece contando várias notas de dinheiro em um restaurante. Na legenda, ele escreveu: "Pagando almoço na Argentina. Se você não quer isso para o Brasil, vote 22 em Bolsonaro". Nas postagens, marcou os perfis de Giovanni Larosa e La Derecha Diario.
Na opinião dos advogados ouvidos pela reportagem, o uso da missão oficial em viagem de campanha eleitoral pode configurar abuso de poder político.
Para a presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-MG (Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais), Isabela Damasceno, se percebe que "o cargo havia sido utilizado, inclusive com carta de que o deputado/agente público estava em uma missão institucional".
"Quando não se localiza claramente o fato e os atos ao serviço do país em que o deputado deveria ter praticado, a missão institucional é fictícia, com claro desvio de finalidade", completou.
Segundo o advogado Marcelo Weick, membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), além de abuso de poder político, o caso pode configurar improbidade administrativa, já que houve uso da máquina pública.
Fake news mantiveram bolsonaristas nas ruas
Os perfis do La Derecha Diario Brasil no Twitter, Instagram e Telegram foram suspensos pelo TSE por espalhar mentiras sobre a segurança das eleições. Isso aconteceu depois que Fernando Cerimedo divulgou uma mensagem no dia 4 de novembro pelo YouTube tentando promover a falsa tese de que houve fraude nas urnas. O vídeo ainda está disponível na plataforma Rumble, no canal de Cerimedo e nos perfis de outros usuários.
O compartilhamento de informações da transmissão, intitulada "O Brasil foi roubado", foi um dos expedientes utilizados por políticos e influenciadores bolsonaristas para inflamar o clima pós-eleitoral no Brasil, o que culminou nos ataques golpistas de 8 de janeiro, que destruíram as sedes dos três Poderes em Brasília.
No vídeo, Cerimedo apresenta a tese fraudulenta de que houve diferença de votos a favor de Lula entre as pesquisas que teriam sido auditadas e as mais antigas, que, segundo ele, não passaram pela auditoria. Todas as urnas eletrônicas utilizadas nas eleições de 2022 foram auditadas e fiscalizadas, conforme confirmado pela Justiça Eleitoral.
Após o resultado eleitoral, o Brasil registrou dezenas de bloqueios nas ruas. A desinformação ajudou a manter ativos os militantes de Bolsonaro e incentivou mais pessoas a aderirem aos atos antidemocráticos que pediam intervenção federal.
Diante das câmeras, Fernando Cerimedo disse ter recebido a informação que corroborava as mentiras a partir "de entidades privadas". "É importante esclarecer que esta informação não tem nada a ver com a campanha de Bolsonaro ou com o governo, esta informação chegou às nossas mãos por entidades privadas", disse.
Ao fazer a live, ele se apresentou como alguém imparcial, omitindo sua relação com Eduardo Bolsonaro e com a campanha do ex-presidente. Ele repetiu as mentiras propagadas no vídeo durante audiência pública no Senado convocada por Eduardo Girão, senador e aliado do ex-presidente, em 30 de novembro de 2022.
Campanha de Eduardo contratou funcionário de Cerimedo
A aliança jornalística também localizou pagamentos a Giovanni Larosa, que coordenou ações na campanha de reeleição de Eduardo em bairros da zona oeste de São Paulo de 12 a 30 de setembro, segundo dados da Justiça Eleitoral.
Além de correspondente do La Derecha Diário no Brasil, Larosa foi destaque em reportagem do portal como assessor de assuntos internacionais de Eduardo.
Em entrevista ao Clip, porém, Cerimedo nega: "Ele não foi transferido para o La Derecha Diário nem para o Eduardo [Bolsonaro]. Ele é um brasileiro que viaja muito e faz vídeos, ficou amigo do Eduardo e o levava para todos os lugares. De nossa parte, apenas lhe demos diárias para que ele pudesse fazer anotações sobre a campanha".
Em vídeo postado por Eduardo Bolsonaro no dia 7 de outubro, Larosa aparece ao seu lado em viagem a São Paulo. Eles embarcaram em avião presidencial da FAB (Força Aérea Brasileira) no qual também viajaram Jair Bolsonaro e a ex-primeira-dama Michelle.
A relação da família Bolsonaro com Larosa é anterior ao período eleitoral. Em 2021, divulgou sua visita ao Palácio da Alvorada ao levar ao então presidente um alfajor. Nesse mesmo ano, Larosa cobriu para La Derecha Diário o CPAC, o congresso político periódico que é definido como o "maior evento conservador do país". Na ocasião, fez uma entrevista exclusiva com Jair Bolsonaro.
Com 77 mil seguidores no Instagram, 26 mil no Twitter e 39 mil no TikTok, Larosa gravou vários vídeos com Bolsonaro durante a campanha e reproduziu ataques a Lula. Ele também ajudou a espalhar desinformação, compartilhou imagens da invasão de prédios dos três Poderes em Brasília em 8 de janeiro e escreveu notícias favoráveis ao ex-presidente para o La Derecha Diário ao longo de todo o ano de 2022.
Em 2021, Giovanni Larosa também fez parte da equipe de Cerimedo contratada para a campanha da argentina Patrícia Bullrich, presidente do partido de direita Proposta Republicana. A mesma equipe trabalha hoje para Javier Milei, candidato presidencial da extrema direita na Argentina e aliado político dos Bolsonaros.
Paralelamente, Cerimedo flertava com a campanha de Donald Trump. Em 22 de março, ele postou uma foto no Twitter tomando café da manhã com pessoas associadas a Trump: "Ótimo café da manhã de trabalho esta manhã com Carlos Diaz Rosillo, principal assessor do secretário de defesa em questões de segurança internacional do governo @realDonaldTrump", escreveu ele.
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