Caronas e beijos forçados: depoimentos inéditos reforçam ação contra Melhem
Depoimentos inéditos de três atrizes, obtidos com exclusividade pelo UOL, reforçam o processo criminal de assédio sexual contra o ator e ex-diretor de humor da TV Globo Marcius Melhem no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio).
As atrizes Karina Dohme, Ellen Roche e Susana Pires foram intimadas pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) e os depoimentos ocorreram em setembro de 2021, após prestarem esclarecimentos no compliance da emissora. Esse processo, que apura a conduta da empresa em relação a casos de assédio, aguarda sentença na Justiça do Trabalho.
Os depoimentos foram enviados do MPT para o MP-RJ e constam nos autos da ação criminal. Karina foi apontada pela promotoria como testemunha, já que o caso dela e de outras sete mulheres está prescrito em decorrência do tempo. Em agosto, Melhem se tornou réu por assédio sexual em processo que tramita em sigilo na 20ª Vara Criminal do TJ-RJ.
Por nota, Melhem negou as acusações. Ele disse que não é alvo de investigação no MPT. "Na instância onde foi investigado, nenhuma das três se apresentou como suposta vítima", informou (leia mais abaixo).
Procuradas, as atrizes não quiseram conceder entrevista. Pelo Código Penal, é assédio sexual "constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico". Veja a seguir o que relataram as atrizes:
Karina Dohme
Karina Dohme é paulista e trabalha como atriz desde 1992. Ela esteve em diversos programas e novelas como "Sandy & Júnior," "Viver a Vida", "Insensato Coração", "Totalmente Demais", "Turma do Didi" e, a mais recente, "Quanto Mais Vida, Melhor". Karina foi intimada a depor depois que o MPT recebeu a lista de pessoas que tinham prestado declarações ao compliance da TV Globo. O depoimento ocorreu em 20 de setembro de 2021.
Na ocasião, ela relatou que trabalhou com Melhem a partir de 2012. Primeiro, no programa "Caras de Pau" e, depois, no "Zorra". No início, segundo o relato de Karina, ele era "amável, acolhedor". Mas, pouco tempo depois, ela notou que ele fazia "comentários de cunho sexual com todas as mulheres". Segundo ela, Melhem "apertava a cintura e cheirava o pescoço das colegas" e as chamava de "gostosas", "delícia" e fazia "gemidos lascivos".
Em uma gravação, em abril de 2012, em Angra dos Reis (RJ), ocorreu um episódio ainda mais grave. Segundo ela, em uma das noites em que o elenco estava lá, Melhem "segurou a porta do quarto" de Karina e disse que "eles iriam dormir juntos".
Karina descreveu que ficou "perplexa com a situação" e, com um sorriso amarelo, respondeu: "Claro que não". Mesmo assim, segundo a atriz, o então chefe insistiu e ficou algum tempo na porta. Karina relata que disse "boa noite" e, ao final, ele desistiu, acrescentando: "Tá bom garota, mas eu não vou desistir de você".
Após entrar no quarto, Karina relata que ficou em "pânico" porque ainda não tinha assinado seu contrato com a emissora e teve medo de ter a participação no programa cancelada. Na ocasião, ela descreve que ligou aos prantos para a mãe e o namorado. O contrato saiu, mas Melhem, segundo ela, intensificou as investidas.
Os dois contracenaram juntos no programa, e a atriz diz que, durante as cenas de beijo, ele ficava "enfiando a língua", enquanto ela "cerrava os lábios com força".
Karina também relata que Melhem encostava o quadril dela contra ele para que fosse possível sentir que "o pênis dele estava ereto". Depois da gravação, segundo a atriz, Melhem fazia comentários de que ela era a "preferida" e que ele a tinha trazido para o programa.
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Quero receberEm 2014, Karina passou a integrar o "Zorra" e, um ano depois, em 31 de outubro de 2015, ocorreu o episódio mais grave. Tanto Melhem como Karina estiveram na festa de aniversário da atriz Fabiana Karla juntamente com outros colegas. Ao final, quando ela e a uma amiga estavam indo embora, Melhem pediu carona às duas que deixavam a festa em um carro de aplicativo. Ao chegar no endereço de Melhem, o humorista disse a ela: "Sobe comigo, pois quero te entregar um negócio". Karina concordou, mas pediu que a amiga a aguardasse.
Ao chegar ao apartamento de Melhem, Karina descreve o seguinte: "Ele a empurrou de forma brutal na parede e começou a beijar a depoente. Ele começou a subir o vestido e ele abriu o zíper da calça".
A atriz relata que ficou "muito assustada com a situação e, nos dez primeiros segundos, ela cedeu ao beijo e aí ela se deu conta da situação e não queria isso e ela empurrou o Sr. Marcius Melhem". A atriz, então, anunciou que estava indo embora e foi encontrar a amiga que a aguardava no carro.
Na sequência, porém, Melhem passou a enviar mensagens insistindo que ela retornasse. Karina não voltou e o ex-chefe escreveu a ela uma mensagem informando sobre as reformulações no Zorra.
Karina disse ao MPT que a mensagem de Melhem dizia o seguinte: "Você precisa saber uma coisa, decisões estão sendo tomadas e o fato de você permanecer no programa não tem nada haver [sic] com o que aconteceu essa noite por que [sic] eu sei que você é neurótica e vai pensar minhoca na sua cabeça".
Seis dias depois, Karina recebeu um email para uma reunião na qual foi informada de que estava sendo demitida do programa e que o contrato não seria renovado. Mais tarde, Melhem pediu para encontrá-la em um hotel em São Paulo. Ao chegar no local, ela disse que foi muito "seca" e "direta" com ele. Disse a Melhem que "não dormiria com ele, que ambos eram casados e que aquilo não podia acontecer".
Depois disso, ela ficou cinco anos afastada dos programas de humor.
Procurada, Karina informou, por nota, que "prefere não se pronunciar publicamente a respeito dos fatos, mas mantém integralmente tudo que afirmou às instâncias competentes".
"Ela apoia e se solidariza com todas as mulheres que sofrem ou sofreram assédio, bem como as que são revitimizadas com ameaças e ataques persistentes. Karina sempre optou pela maior discrição possível, colaborando com as autoridades e respeitando os limites de sua saúde mental. Ela confia na Justiça para que o réu tenha uma sentença adequada aos seus atos. Afirma também que sempre esteve e sempre estará à disposição das autoridades, caso se faça necessário", conclui o comunicado da atriz.
O relato de Karina possui semelhanças ao que foi descrito pela atriz Carol Portes. Ela falou, com exclusividade, ao UOL e o caso dela embasou o processo de assédio sexual contra Melhem.
Ellen Roche
A atriz Ellen Roche é paulista e esteve em diversos programas e novelas da TV Globo como "Beleza Pura", "Negócio da China", "Malhação" "Ti ti ti", "Sangue Bom", "O outro lado do Paraíso" e "Escolinha do Professor Raimundo"'. Ela prestou depoimento ao MPT em 29 de setembro de 2021 também intimada após prestar declarações ao compliance da TV Globo.
Ellen recordou que conheceu Melhem em 2008 e trabalhou com ele no programa "Zorra Total" em algumas oportunidades e, mais tarde, na escolinha do "Professor Raimundo".
A atriz relatou que tinha uma boa relação de trabalho e que Melhem "brincava muito". No entanto, ela registra que ele se referia a ela como "linda, maravilhosa e algumas vezes chamava de gostosa". Mais adiante, ela diz que ele chegou a lhe falar: "Mulherão, ah se ela me desse bola". Ellen afirma que "não sabia se eram cantadas ou brincadeiras".
A atriz recordou ao MPT um episódio em uma churrascaria em 2015. Melhem ofereceu carona a ela até o estúdio, mas Ellen não aceitou e pediu à colega Maria Clara Gueiros que a acompanhasse.
Em outro episódio, Ellen relata que Melhem perguntou onde era o hotel dela e se podia passar no local para encontrá-la. Ela disse ter respondido: "Para quê?".
Segundo Ellen, Melhem ficou dando risada. A atriz relata que disse ao então chefe que ele era um homem casado e que ela tinha namorado, sendo "melhor parar com as brincadeiras". Ellen registra que, em seguida, Melhem "ficou um pouco chateado, mas depois ele se afastou".
Ela ainda assinalou ao MPT que as "brincadeiras do Marcius foram aumentando". A atriz disse ter ficado "um pouco constrangida e, a partir da sua recusa, o Marcius parou de brincar".
No entanto, dois depoimentos de colegas relatam mais situações. A atriz Maria Clara Gueiros, em 18 de agosto de 2021, falou à Polícia Civil do Rio de Janeiro, já no processo de assédio sexual, que o episódio na churrascaria foi mais grave.
Segundo Maria Clara, Ellen "desesperada bateu no vidro do carro da depoente e pediu desesperadamente que a levasse para qualquer lugar, pois queria evitar ficar sozinha com Melhem". Maria Clara deu carona para a colega até o hotel onde ela estava hospedada e, no caminho, Ellen teria dito que estava constrangida e assustada com as investidas de Melhem.
A diretora Cininha de Paula depôs relatando que viu Ellen chorando ao sair do banheiro antes de uma gravação e que, mais tarde, outra colega de elenco contou a ela que Melhem teria segurado Ellen contra a parede e dito que só a soltaria se ela o beijasse. Cininha disse que pediu a Ellen que denunciasse, mas a atriz não quis com medo de ser demitida.
Ellen também respondeu a perguntas da polícia por meio de carta precatória. O conteúdo do depoimento é bastante parecido ao que relatou ao MPT, embora as respostas tenham sido registradas de modo mais sucinto. Na ocasião, ela disse que trabalharia com Melhem novamente porque não possui nada contra ele.
Questionada sobre os episódios pelo UOL, Ellen disse apenas que não gostaria de falar sobre o assunto.
Susana Pires
A atriz e autora Susana Pires é natural do Rio de Janeiro. Ela estreou na televisão em 1994 em "Confissões de Adolescente" e depois fez uma série de trabalhos, como "Tocaia Grande", "Agora É que São Elas" e participações em "Toma Lá, Dá Cá", "Zorra Total", entre outros. Esteve em "Caras & Bocas", "Fina Estampa" e foi autora de outras obras, entre elas, da novela "Sol Nascente" com Julio Fischer e Walther Negrão, em 2016.
Ela prestou depoimento na Ouvidoria das Mulheres no CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) e depois mais dois no âmbito do MPT (um em 15 de setembro de 2021 e outro em julho deste ano).
No depoimento, é descrito que ela foi "vítima de Marcius Melhem em razão de atos de assédio sexual no programa Caras de Pau, em 2010, que foi o primeiro programa em que ele era chefe, além de ator no programa".
Susana explicou que a equipe de roteiristas, além de Melhem, era composta de oito homens e a única mulher era ela. Na ocasião, a redação do programa ficava em um flat no Leblon, na zona sul do Rio, e as reuniões ocorriam lá. O espaço, segundo Suzana, era muito pequeno e, aos poucos, ela entendeu que precisaria "se adequar" para ser ouvida e para "não ser calada pelas 'piadas'" dos homens.
Segundo a atriz, desde o início, Melhem fazia "piadas" que giravam em torno de ela ser "gostosa". Com o tempo, ele passou a colocar "as mãos nas pernas da depoente e começou a aumentar a carga do assédio".
Em uma ocasião, ele chegou a recepcionar ela de cueca. "Que após o almoço, as pessoas usavam o banheiro para escovar os dentes; que Marcius saía de cueca do banheiro dizendo 'Suzana, vamos resolver nossa história'; que a depoente começou a sentir muita raiva e começou a reagir com palavras e, a partir daí, o trabalho da depoente passou a ser desvalorizado absurdamente".
Ao prestar depoimento à polícia do Rio, em 2021, Melhem foi questionado se a recebia de cueca e respondeu: "Não é verdade. Isso só ocorreu uma vez só, pois se tratava de brincadeira e também não tinha conotação sexual".
Porém, em julho deste ano, Susana peticionou, por meio de sua advogada, retificação da posição dela nos autos do processo de assédio sexual —de vítima do caso para a de testemunha. Ela relatou no documento que depôs no processo do MPT, a pedido das outras vítimas, para contribuir para "eventual contextualização do caso, se fosse necessário".
No documento, é descrito que, "no passado, Susana se valeu da autonomia de não representar —condição oportunizada pelo legislador em razão da natureza da ação penal do delito que ela teria experimentado há [sic] época— e tal autonomia não lhe pode ser retirada uma década depois".
Assim, "considerando que os fatos narrados por Susana se coadunam a tipo penal que demandaria seu interesse em perseguir criminalmente e que, por opção da mesma, não foi o que ocorreu, a qualificação da ora testemunha de caráter - equivocadamente denominada nos autos de "vítima" - representa não apenas a supressão da vontade da - hà época (sic) - vítima, como a inovação prejudicial e, portanto, contra a lei, de se considerar a natureza de ação penal pública incondicionada (presente) a crime que teria sido praticado no passado".
A atriz faz referência ao fato de que, até 2018, para um caso de assédio ser processado era necessário que a mulher fizesse uma comunicação às autoridades representando o crime. Isso mudou e agora não é mais necessário.
Susana, porém, não pediu retificação de nenhum fato relatado no depoimento. Por lei, a decisão de qualificar uma vítima ou testemunha cabe às autoridades. No caso, à promotoria. Na denúncia contra Melhem, Susana é citada entre os casos de vítimas que tiveram os casos prescritos em decorrência do tempo.
Susana não quis conceder entrevista.
Veja a íntegra da nota dos advogados Ana Carolina Piovesana, José Luis Oliveira Lima, Letícia Lins e Silva e Técio Lins e Silva que atuam na defesa de Marcius Melhem
"É importante registrar, desde logo, que Marcius Melhem nunca teve acesso à íntegra dos depoimentos no Ministério Público do Trabalho, porque lá não é investigado. Mas cabe informar que:
- Suzana Pires, após o mencionado depoimento ao MPT, destituiu a advogada Mayra Cotta e pediu ao Ministério Público do Rio de Janeiro que fosse retirada da lista de supostas vítimas;
- Karina Dohme jamais apareceu como suposta vítima no MP, onde Melhem poderia mostrar muitas comunicações que desmentem narrativas como as mencionadas pela jornalista. Talvez por essa razão, também tenha desistido de aparecer como testemunha na investigação policial;
- Quanto a Ellen Roche, a própria imprensa já divulgou mais de uma vez partes de seu depoimento no MP em que nega acusações de assédio e afirma que trabalharia novamente com Melhem, já que não tem nada contra ele.
Registre-se, ainda, que Melhem não é alvo de investigação no MPT e que tampouco pode lá se defender. E na instância onde foi investigado, nenhuma das três se apresentou como suposta vítima.
Trazer à opinião pública três casos já esclarecidos de não-vítimas é mais uma tentativa de manter acesa uma acusação que não se sustenta.
Tendo em vista que a matéria quer requentar notícias já expostas na imprensa, poderia também lembrar aos seus leitores que o MPT traz uma carta da TV Globo afirmando, após intensa investigação, que não se comprovou assédio de Marcius Melhem quando lá trabalhava.
Finalmente, é de se estranhar que o mesmo veículo que preserva nomes de supostas vítimas, exponha publicamente mulheres que não acusam Melhem de assédio na Justiça."
Nota da colunista:
Diferentemente do informado pela defesa de Melhem, os depoimentos das atrizes ao MPT constam dos autos do processo criminal e a própria defesa do humorista faz referência a esses depoimentos em petições.
Também não procede a informação de que a atriz Karina Dohme desistiu de ser testemunha. Ela foi arrolada pelo MP-RJ como testemunha no momento da denúncia.
No momento em que ofereceu a denúncia contra Melhem, o MP-RJ não escreveu, em nenhum momento, que alguma das acusações feitas pelas 11 mulheres que falaram às autoridades não procedia. Somente arquivou oito casos por prescrição em decorrência do tempo.
Em 31 de janeiro deste ano, o setor de compliance da TV Globo enviou uma carta para a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam/Centro) informando que "faz-se necessário ressaltar, ainda, que, após o término do referido período de afastamento, a Globo decidiu pela rescisão do contrato de trabalho, entendendo que, diante da constatação da violação ao Código de Ética e Conduta do Grupo Globo pelo sr. Marcius Melhem a manutenção do contrato de trabalho tornou-se insustentável, considerando que a postura adotada pelo mesmo não condiz com os princípios e valores da empresa."
A revista Veja divulgou, em maio deste ano, que a defesa da TV Globo alegou ao MPT que, em relação a Melhem, "restou, de fato, constatada a inadequação do artista com seus subordinados, sem que fosse possível comprovar a prática deliberada de assédio sexual, dados os contornos legais que a conduta exige para sua caracterização".
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