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Kennedy Alencar

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Nise Yamaguchi nega papel evidente para reforçar negacionismo de Bolsonaro

01.jun.2021 - Médica Nise Yamaguchi durante depoimento na CPI da Covid, em Brasília (DF) - Adriano Machado/Reuters
01.jun.2021 - Médica Nise Yamaguchi durante depoimento na CPI da Covid, em Brasília (DF) Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

01/06/2021 12h53

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Em depoimento à CPI da Pandemia, a médica Nise Yamaguchi tentou diminuir a importância que teve para reforçar o negacionismo científico do presidente Jair Bolsonaro. Como umas principais conselheiras de Bolsonaro, ela é cúmplice do agravamento da tragédia do coronavírus no Brasil.

Nise Yamaguchi é uma das grandes defensoras do chamado "tratamento precoce", o uso de medicamentos como cloroquina e ivermectina para combater o coronavírus. A defesa desse tipo de tratamento é criminosa, porque cloroquina e ivermectina não funcionam contra a covid. A cloroquina pode matar quem tem arritmia cardíaca. Altas dosagens de ivermectina causam problemas hepáticos.

Se as pessoas acreditam que existe um tratamento que funciona contra o coronavírus, podem ser estimuladas a correr mais riscos e se contaminar por menosprezar os perigos. Nesse contexto, a defesa do tratamento precoce aumenta riscos de mais infecções e agrava o estado de saúde de quem ficou doente com covid-19.

Evasivo e prolixo, o depoimento foi claramente orientado por advogados preocupados em poupar Bolsonaro e a própria médica. Ela disse que deu "colaboração eventual" ao governo, apesar de ter tido um papel fundamental e evidente do ponto de vista público para formular a estratégia do presidente que agravou a pandemia no país. Mais gente morreu e adoeceu devido às ações e omissões de Bolsonaro.

Nise Yamaguchi mentiu, se contradisse e afirmou que não se lembrava de encontros que teve com Bolsonaro e integrantes do governo. Negou que tivesse lançado dúvidas sobre a eficiência da vacina para enfrentar a pandemia, apesar de vídeo exibido mostrar que ela afirmou que não deveria haver imunização aleatoriamente da população. Ela negou ter dito que lockdown não funcionava, mas foi exibido vídeo confirmando que ela dissera isso. Ela defendeu a imunidade de rebanho, apesar de ter negado na CPI.

Ela também negou que tenha tentado mudar a bula da cloroquina a fim de usar o remédio para combater o coronavírus. "A minha verdade é que não houve [tentativa de] mudança de bula [da cloroquina] nem decreto", disse Nise. Nesse momento, ela negou uma afirmação feita na CPI pelo presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, de que ela participara de uma reunião em 6 de abril de 2020 para discutir a alteração da bula da cloroquina.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta também afirmou em depoimento à CPI que houve uma tentativa de mudar a bula do medicamento nessa reunião.

Nise Yamaguchi disse à comissão que ocorreu uma discussão para distribuir cloroquina a fim de combater a covid-19. Segundo ela, a reunião debateu a "disponibilização da medicação (cloroquina) num momento de pandemia". Na prática, seria promover alguma modificação legal para uso livre da cloroquina contra a covid. O medicamento, entretanto, funciona contra a malária.

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) indagou se ela tinha ciência da gravidade de acusar Mandetta e Barra Torres de terem mentido. Ela negou tê-los acusado de faltar com a verdade. Afirmou que se confundiram.

Pseudociência

O fato de tratar pacientes com câncer há 40 anos não dá à médica autoridade para defender um tratamento ineficaz contra a covid-19. A liberdade do médico para prescrever remédios ao seu paciente tem de ser guiada por critérios científicos. A ciência já provou que a cloroquina não funciona contra a covid. O médico que receita esse remédio, mesmo com boas intenções, trata erradamente o seu paciente.

Apesar de ter se gabado publicamente de falar com frequência com o presidente, ela disse que foi uma "colaboradora eventual". Ela fez campanha para substituir o ex-ministro Mandetta e Nelson Teich, mas Bolsonaro não a nomeou. Segundo ela, houve "ilações que toda a imprensa fez".

O depoimento da médica gerou debates internos na CPI. Houve sugestão para suspender a inquirição, porque ela depôs como convidada e não como convocada na condição testemunha. Após a discussão, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), decidiu continuar o interrogatório conduzido pelo relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL).

O depoimento de Nise Yamaguchi virou o que era esperado: um palco para desinformação, como aconteceu na semana passada com Mayra Pinheiro, secretária do Ministério da Saúde. Nise Yamaguchi repetiu o comportamento pseudocientífico de Mayra Pinheiro. Invocou a condição de técnica para se apresentar como autoridade sobre um assunto. No entanto, ela está tecnicamente errada sobre cloroquina e como tratar quem está com covid.

A médica invocou o manto das boas intenções para justificar seu comportamento e disse que havia crítica a quem queria colaborar com o Brasil. No caso específico, o voluntarismo da médica é prejudicial à saúde. O depoimento contribuiu muito pouco para a CPI. Foi puro obscurantismo travestido de ciência. As intervenções dos senadores Otto Alencar (PSD-BA) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) foram importantes para mostrar os erros e o despreparo da médica em relação à covid-19.