Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Com armas e aborto, Bolsonaro tenta ganhar tempo enquanto inflação não cai
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Incapaz de dar boas notícias sobre a inflação (cujos dois dígitos vão devorando a comida na mesa das famílias) e sobre a renda dos trabalhadores (que caiu 7,9% em um ano, segundo o IBGE), Jair Bolsonaro desembesta a falar de armas, aborto, gênero, religião e comunismo a fim de entreter e distrair a multidão. O povo tem fome? Que coma motociata.
Foi o que ele fez em mais um ato de campanha eleitoral, desta vez em Jataí (GO), nesta terça (31), quando adotou o combo completo junto a um público que lhe é simpático.
Defendendo coisas como "um povo armado jamais será escravizado" e alertando para o fantasma (inexistente) de uma ditadura comunista no Brasil, tenta preencher com bobagens o estômago de parte dos brasileiros.
O problema é que, como sempre alerta a mãe da gente, comer bobagem engana, mas não alimenta. Até porque, segundo pesquisa Datafolha divulgada também nesta terça, 72% da população discordam que a sociedade seria mais segura se as pessoas andassem armadas, como prega Jair.
Os principais críticos são as mulheres, os negros e os pobres, ou seja, três maiorias numéricas tratadas como minorias em direitos.
A estratégia busca ganhar tempo, enquanto seus sócios no Congresso Nacional tentam reduzir na marra o preço dos combustíveis (planejando tirar recursos que iriam para educação e saúde dos mais pobres, por exemplo) e na expectativa de que a inflação reduza naturalmente com uma mudança da conjuntura. O que melhoraria sua popularidade e, assim, as intenções de voto.
Claro que o discurso que incentiva a compra de armas também ajuda a preparar seus seguidores para uma tentativa de golpe, em caso de derrota do bolsonarismo em outubro. Mas o presidente já deixou claro que prefere ser chamado de golpista do que de Bolsocaro, até porque, apesar de ameaças de golpe serem gravíssimas, o povão está mais preocupado - e com toda a razão - se vai ter comida no jantar dos filhos. E não perdoará governante que deixar faltar.
Ele também abraça a estratégia porque há um eleitorado flutuante de olho na pauta econômica, mas que também se preocupa com a pauta comportamental.
Bolsonaro busca quem está em dúvida entre votar pela segurança material ou por costumes
O Datafolha divulgou, na sexta (27), que 20% dos eleitores de Jair Bolsonaro optam por Lula caso não votem no atual presidente na eleição de outubro. Já 17% dos eleitores do ex-presidente escolhem Bolsonaro como segundo voto. Isso é difícil de ser compreendido quem está imerso na polarização, mas é simples se você lembrar que, aos olhos de muitos, nenhum candidato é perfeito.
Existe um eleitor atraído tanto pela segurança material do legado de Lula quanto pelo discurso de costumes e comportamento de Bolsonaro.
"Esse eleitor, sobretudo nas classes C e D, movido fundamentalmente por uma urgência material, lembra de como era o governo Lula no passado e reativa a sua memória. E o legado lulista é algo poderoso: 'eu comia carne, pagava contas, chegava ao final do mês' ", explicou à coluna Esther Solano, professora de Relações Internacionais da Unifesp, que vem desenvolvendo uma extensa pesquisa de campo sobre o comportamento dos eleitores de ambos.
E, diante de uma escalada da inflação nos alimentos, o Auxílio Brasil já perdeu muito de seu poder de compra de R$ 400, reduzindo seu impacto eleitoral.
Mas, se uma parte se reconecta a Lula, com base no legado de cuidado dos pobres do passado, outra se desconecta dele pela pauta moral, simbólica e de costumes ligada a Bolsonaro. "Entrevistei público que disse 'eu queria votar no Lula porque ele cuidava dos pobres, a gente conseguia comer bem naquele tempo, mas se ele continuar falando de aborto, eu voto no Bolsonaro."
Nesse sentido, responder a Bolsonaro no seu campo de batalha, ou seja, retrucando declarações sobre costumes em um momento em que o principal problema nacional é a inflação e a fome, é garantir exatamente o que ele quer.
Melhor reagiriam os candidatos que desejam derrota-lo se evitassem fornecer munição para ele e, ao mesmo tempo, tirassem-no da zona de conforto, trazendo de volta o debate para as necessidades materiais.
Perguntando, por exemplo, como o seu governo permitiu que a cesta básica subisse 27% em abril em São Paulo, passando a custar mais de R$ 800? Por que você se escora em bobagens como "a culpa é do fique em casa" se há países que adotaram o distanciamento para salvar vidas na pandemia e não estão passando fome como nós? Ou mesmo questionar a razão da folga de carnaval que ele tirou ter custado R$ 783 mil aos cofres públicos num momento em que trabalhadores evitam comprar um iogurte para os filhos por falta de dinheiro?