Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Diplomacia vê vexame em país tratar pedaço de Pedro 1º como chefe de Estado
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
O Brasil passa vergonha por tratar um pedaço do corpo de seu falecido imperador com honras de chefe de Estado, como se ele estivesse vivo. Essa é a avaliação de experientes embaixadores e ministros do Ministério das Relações Exteriores ouvidos pela coluna em condição de anonimato. O Itamaraty afirmou, em nota à imprensa, que fará um evento para o coração no formol de Pedro 1º com a presença de representantes de outros países.
"Amanhã, dia 23 de agosto, o coração será recebido no Palácio do Planalto e, em seguida, haverá cerimônia, no Palácio Itamaraty, com a presença do corpo diplomático estrangeiro", diz a nota. Isso ecoa a desastrada palestra contra o sistema eleitoral brasileiro que o presidente Jair Bolsonaro proferiu a embaixadores, no Palácio do Planalto, no dia 18 de julho.
O governo federal pediu emprestado o coração de Pedro 1º a Portugal, onde está preservado em formol desde 1834, para as celebrações de 200 anos da Independência. O seu corpo está sepultado na cripta imperial, que fica no Monumento à Independência, próximo ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, junto com os restos mortais de suas esposas, Leopoldina e Amélia.
Termos como "absurdo", "vexame", "perplexo" e "gasto inútil de dinheiro público" foram usados pelos diplomatas ouvidos pela coluna para comentar a declaração do ministro Alan Coelho de Séllos, chefe do cerimonial do Itamaraty.
"O coração será recebido no Brasil como chefe de Estado, e será tratado como se Dom Pedro I fosse vivo entre nós, não é? Portanto, ele será objeto de todas as medidas que se costumam atribuir a uma visita oficial, uma visita de Estado, de um soberano estrangeiro, no caso de um soberano brasileiro ao Brasil", disse Séllos, em registro do G1.
Mesmo com o toque de Idade Média que a campanha eleitoral vem ganhando nas últimas semanas, tratada como guerra santa e cruzada pelo presidente e parte seus aliados e seguidores, ainda soa distópico o Brasil de 2022 tratar uma relíquia, um pedaço do corpo de um personagem histórico, como um chefe de Estado.
Isso sem contar os altos custos que o deslocamento disso impõe em um momento em que o país deveria ter outras prioridades.
O órgão chegou a Brasília, nesta segunda (22), sem um propósito educacional ou histórico, como uma tentativa do governo de usar politicamente a data em meio à campanha pela reeleição de Bolsonaro. Vai atrair curiosos, da mesma forma que sangue na TV também atrai. O coração ficará exposto para visitação pública de 25 de agosto a 5 de setembro.
Um dos diplomatas citou à coluna que no Decreto 70.274, de 9 de março de 1972, publicado na ditadura militar e assinado pelo general Médici, seguido pelo Itamaraty para cerimoniais, não há previsão de que um coração no formol seja tratado da mesma forma que o governante de outro país.
Destaca que o capítulo 7 trata das cerimônias e honras fúnebres em caso de óbito do presidente da República, o capítulo 8, de outras autoridades civis e militares brasileiras e o 9, de falecimento de chefe de Estado estrangeiro, e o 10, de falecimento de chefe de missão diplomática estrangeira.
Mas todos dizem respeito a mortes ocorridas no presente, e não há quase 188 anos.