O que a prisão de Braga Netto e o Viagra ensinam sobre o golpismo militar
Não é que Bolsonaro, o malvadão, perverteu pobres generais estrelados, como Walter Braga Netto, hoje preso por obstruir a investigação sobre a tentativa de golpe de Estado do qual participou. Setores militares estavam com Jair desde antes mesmo de seu governo em busca de privilégios, de dinheiro, de poder. Sim, era amor, não cilada.
Então, é saudável para a democracia, para a História e para a prevenção à gastrite que muita gente boa pare de investir na fanfic de que o bolsonarismo tirou bons militares do caminho correto.
Militares formam um dos pilares do bolsonarismo. O ex-presidente não criou o golpismo militar. Ele sempre esteve aí, inclusive Jair Messias é forjado na ditadura. Ele só deu à extrema direita organização e sentido através de sua eleição em 2018, inclusive nas Forças Armadas.
Há militares legalistas que se moveram para impedir o golpe, claro. Mas a quantidade de oficiais envolvidos nas sacanagens contra a democracia derruba a justificativa de que os golpistas são apenas casos pontuais e que os militares se deixaram levar pelo bolsonarismo como se fossem polo passivo.
Isso porque ninguém fez ainda uma extensa pesquisa de opinião entre soldados, cabos e sargentos para entender o que eles pensam da ficção do "poder moderador" dos militares e da intentona bolsonarista.
Nos seus quatro anos de governo, Jair fechou uma sociedade com os militares, oferecendo cargos, privilégios na Reforma da Previdência (privilégios, viu, Marinha?), licitações suspeitas de produtos para levantar o moral do oficialato. Eles se beneficiaram de compra superfaturada de Viagra segundo o Tribunal de Contas da União e de aquisição estranha de próteses penianas, mas também de camarão e filé mignon e continuaram ganhando pensões especiais para filhas não casadas e acesso a hospitais especiais.
Coronéis articularam bizarras reuniões em que se negociou com reverendos, servidores públicos e indicados de políticos, sobrepreço e propinas para a compra de doses de vacina contra a covid-19 enquanto pessoas morriam por falta de imunizante.
Bolsonaro atacou as urnas eletrônicas com a ajuda dos militares ao longo de anos. Em julho de 2021, por exemplo, Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, recebeu um recado do então ministro da Defesa, Braga Netto, de que se não houvesse voto impresso e auditável, não haveria eleição em 2022. O golpismo foi revelado por reportagem de Andreza Matais e Vera Rosa, no jornal O Estado de S.Paulo.
E, em, novembro de 2022, os comandantes das três forças soltaram uma nota com uma falácia infanto-juvenil, apontando que o fato de não terem encontrado problemas nas urnas não significava que eles não existiam.
Após o segundo turno, os comandantes das Forças Armadas deram uma passada de pano monumental nos movimentos golpistas que acampavam em torno de quartéis e trancavam rodovias. Defenderam, em nota pública, que os atos eram legítimos, ignorando que eles não estavam pedindo mais arroz e feijão, educação ou saúde, mas um golpe de Estado com participação e prisão do presidente eleito. Esses "atos legítimos" desaguaram na tentativa de golpe.
Dezenas de acampamentos montados à frente de instalações militares em cidades de todo o Brasil após as urnas darem a vitória a Lula serviram para abastecer a mobilização golpista de 8 de janeiro. E o acampamento golpista em frente ao QG do Exército também serviu de cabeça-de-ponte para o ataque à sede da Polícia Federal e a queima de carros e ônibus no dia 12 de dezembro e o planejamento da bomba colocada em um caminhão de combustível a fim de explodir o aeroporto de Brasília na véspera de Natal, além do próprio 8 de janeiro.
Em uma reunião com Bolsonaro, quando as Forças Armadas foram chamadas a aderir o golpe, no final de 2022, o almirante Garnier teria colocado a Marinha à disposição, segundo depoimentos do general Freire Gomes e do brigadeiro Baptista Júnior, que se negaram a participar do crime.
Aliás, por conta disso, Braga Netto chamou o general Freire Gomes de "cagão" em uma conversa por mensagem com um outro golpista, Ailton Gomes, e soltou seus cachorros para cima do comandante.
Como já disse aqui um rosário de vezes, nunca curamos as feridas deixadas por 21 anos de ditadura. Tapamos com um curativo mal feito, ao qual chamamos de transição lenta, gradual e segura. Mas essas feridas continuam fedendo, apesar dos esforços estéticos. Não apenas pelo apoio e a anuência de membros das Forças Armadas à tentativa de golpe, mas toda vez que o Estado mata - não como um infeliz efeito colateral da proteção da população ou de si mesmo, mas como execução de uma política de limpeza e contenção social que foi aprimorada durante a Gloriosa.
Forças Armadas são importantes para qualquer país, desde que saibam quem devem proteger. A sua potência está na capacidade de respeitar a Constituição Federal, não de obter benefícios em troca de ser usada para atender às necessidades de um governo de plantão. Se militares não foram presos pelo golpismo de 1964, que o sejam pelo de 2022/2023.
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Quero receberNão à toa o Sensacionalista foi bastante feliz ao criar, neste sábado (14), o título "Braga Netto é preso e o ano de 1964 vai chegando ao final".
Este é o momento de promover mudanças legislativas para garantir que militares fardados fiquem na caserna, deixando a política para civis, como tramita no Congresso Nacional. Mas não só: o ideal seria revisar a legislação para impedir a distorção da Constituição por extremistas que acreditam no tal poder moderador, acabar com privilégios das Forças Armadas e mandar para a cadeia generais estrelados que participaram da tentativa de golpe.
A falta de punição de militares de alta patente por causa do golpe de 1964 e pelas consequentes sacanagens cometidas durante a ditadura ajudou a semear a tentativa de golpe ao final do mandato de Bolsonaro que contou com a cumplicidade de militares de altas patentes e sacanagens das mais diversas. O passado não resolvido sempre volta. Camuflado, entrincheirado com Viagra e próteses penianas, mas volta.