Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
E se o povo preferir Gusttavo Lima a educação e saneamento?
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Os relatos sobre shows milionários contratados por pequenas prefeituras sem licitação explodiram na imprensa nacional em um episódio que é o mais puro suco de Brasil. Um sertanejo fala da tatuagem íntima de Anitta e condena a Lei Rouanet. Atirou a primeira pedra tendo telhado de vidro, mas não foi o dele que ruiu, foi o de Gusttavo Lima, um recordista brasileiro de cachês.
Na sociedade polarizada e emburrecida em que vivemos surgem logo as polarizações em torno do tema. "É contra Lei Rouanet porque não tem como burlar, prefeitura sem licitação é brecha para corrupção", dizem os desavisados e inexperientes sedentos por demonstrar virtude.
Também já ouvi que a Lei Rouanet contrata os pequenos artistas enquanto as prefeituras favorecem os milionários, ideia de quem vive em Nárnia ou jamais reparou nas informações dos shows caríssimos que frequenta. Se uma empresa vai se associar a um evento cultural, quer o nome famoso. Pequenos artistas e cultura local são beneficiados apenas por editais de cultura, que nem entraram na história porque é pouco dinheiro.
Surgiu ainda a polarização entre sertanejo e funk ou sertanejo e pop, outro sintoma do emburrecimento do debate político. Sertanejos seriam necessariamente bolsonaristas e contra a Lei Rouanet porque têm um esquema com prefeituras. Como se só sertanejo fosse contratado por prefeitura ou dinheiro tivesse preferência musical.
Estamos diante de um problema grave e uma decisão importante sobre formas de financiar a cultura no Brasil. Ao comparar os cachês dos artistas com os gastos em saúde, educação e saneamento, confesso que fiquei chocada. Aliás, como toda elite urbana do Brasil, fui invadida pela mais justa indignação cidadã.
Mas e os habitantes desses municípios? Não protestaram? Sim, só que foi contra o cancelamento do show milionário do Gusttavo Lima.
Você, por exemplo, preferiria ter educação de qualidade ou um show do Gusttavo Lima? Eu respondo prontamente porque posso ter os dois. Prefiro educação de qualidade e até considero bom o trabalho do Gusttavo Lima. Se eu puder não ter nenhum contato com a obra, passo a considerar excelente. Ocorre que essa não é a opção dos habitantes desses pequenos municípios.
Eles não têm a mais remota esperança de obter educação de qualidade, saúde ou saneamento básico. O formato de pacto federativo que desenvolvemos mantém os prefeitos eternamente de pires na mão e os cidadãos brigando por migalhas. Infelizmente, o ser humano se adapta.
Nas pequenas cidades, o eleitor já se adaptou à realidade em que seus direitos constitucionais simplesmente não vão chegar. E nós, nos grandes centros, nos adaptamos à realidade em que não precisamos pensar nisso. Os shows milionários são um sintoma do impacto profundo da desesperança e da distorção da cidadania.
Cidadãos de Teolândia explicaram na televisão por que se revoltaram e fecharam a rodovia, colocando fogo em pneus. O Ministério Público pediu o cancelamento do show de última hora, depois que os moradores investiram o que não tinham em cabeleireiro, mercadorias, roupa, barracas, comidas. A cidade entrou em estado de emergência devido às chuvas no sul da Bahia ano passado e os moradores contavam com a tal "Festa da Banana" para ganhar uns trocados.
O escândalo dos sertanejos promoveu o encontro entre a economia da atenção, novidade da era digital, e a exploração política da miséria, uma especialidade da pátria. São processos que erodem a democracia e a cidadania. Temos a opção da indulgência de fingir estar do "lado certo" ou da dor de enfrentar nossos problemas, que são de todos e cada um.
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