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Maria Carolina Trevisan

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Enem como espelho do governo Bolsonaro é mais uma tragédia para o Brasil

Colunista do UOL

17/11/2021 04h00

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) confessou a intenção de interferir no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) ao dizer, nesta segunda (15), que as provas "começam agora a ter a cara do governo". Que cara deve ter um exame nacional para estudantes do ensino médio que se equipare ao governo Bolsonaro? A que se referiu o presidente?

Para um presidente que nega a ciência no meio de uma pandemia perigosa, que quer reescrever a história quando não admite o horror da ditadura, que não confia em produção acadêmica e retira recursos de pesquisa, o Enem deveria ser o contrário da "cara do governo".

Pode ser também que em sua cabeça tenha passado a possibilidade de que a "ideologia de gênero" venha a influenciar adolescentes e jovens ao estudarem para as provas, a mesma ideia que vocalizou seu filho Eduardo, ao reprovar o Superman bissexual.

Jair tem atuado por meio do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para barrar discussões sobre gênero e defender o que considera a família ideal, a "cara do governo": preconceituosa, homofóbica, excludente, como mostramos no UOL em reportagem com Jamil Chade.

Bolsonaro pode também ter se referido à mudança de perfil dos estudantes inscritos no exame de 2021 provocada por sua gestão. O Enem deste ano tem a menor proporção de pretos, pardos e indígenas dos últimos dez anos. É a edição mais branca e elitista desse período. O exame, então, é cada vez mais a "cara do governo", a mesma cara de quem segue delegando o voto a Bolsonaro, como mostram as pesquisas de opinião mais recentes.

O que provocou a diminuição de inscrições de pretos, pardos e indígenas foi principalmente a retirada da isenção da taxa de inscrição para quem faltou na edição do ano passado, durante o ápice da pandemia de covid-19 no Brasil.

É caro fazer as provas. Custa R$ 85. Para a população mais vulnerável, é um montante muito importante, cerca de 21% da parcela mensal do Auxílio Brasil (considerando a melhor das hipóteses de transferência de renda com valor de R$ 400). Têm direito à isenção aqueles estudantes que cursaram o ensino médio em escola pública, os que têm renda familiar menor que 1,5 salário mínimo ou quem está inscrito no CadÚnico. Ou a pessoa alimenta a família, ou ela paga a taxa de inscrição do Enem.

Retirar a isenção da taxa de inscrição de vulneráveis é a "cara do governo" Bolsonaro. Desprezar programas sociais e não fazer políticas públicas para manter jovens na escola no meio de uma crise sanitária, econômica e social é a "cara do governo" Bolsonaro.

Bolsonaro governa para seus apoiadores, uma quantidade cada vez menor de pessoas. Mas o Enem deveria ser uma política de Estado, não uma ação de governo com objetivos pessoais e partidários. O prejuízo de cercear o direito à educação superior provoca problemas na área econômica, pois aprofunda o desemprego e o trabalho informal, aumenta a desigualdade social e racial e leva o Brasil para um buraco ainda maior, que pode demorar anos até ser reparado.

Quando se olha para esse projeto político, se entende a declaração do ministro da Educação, Milton Ribeiro, há dois meses. "Que adianta você ter um diploma na parede, o menino faz inclusive o financiamento do Fies, que é um instrumento útil, mas depois ele sai, termina o curso, mas fica endividado e não consegue pagar porque não tem emprego", afirmou. "A universidade deveria ser para poucos." Para ele, bastariam cursos técnicos, uma lógica ao contrário do desenvolvimento social e econômico. A "cara do governo" Bolsonaro.

O problema é ainda maior porque essa é uma lógica que começa no início da vida do cidadão, em casa, na falta de direitos básicos, e segue quase sem possibilidade de mobilidade social.

Um estudo da FGV publicado nesta quarta (17) demonstra que a renda familiar influencia diretamente no desempenho do aluno no Enem, além de outros fatores de vulnerabilidade. Nesse sentido, a pessoa que nasce em situação de pobreza, se mantém nela até morrer —ou morre dela, por falta de estrutura, alimentação, oportunidades, emprego, educação.

Lisura e credibilidade em risco

O Enem foi criado em 1998, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Naquela época, o ministro da Educação era Paulo Renato Souza. Até 2003, o exame era aplicado para avaliar o desempenho dos alunos do ensino médio. Na primeira edição, 157 mil estudantes se inscreveram.

Em 2004, o então ministro da Educação, Tarso Genro, no governo Lula, instituiu o Prouni (Programa Universidade para Todos). Com isso, universidades passaram a considerar as notas obtidas no Enem para conceder bolsas de estudo. No ano seguinte, quando Fernando Haddad esteve à frente da pasta, 3 milhões de alunos se inscreveram para fazer a prova.

Ainda na gestão de Haddad, em 2009, aconteceu o escândalo do vazamento das provas do Enem, revelado pela jornalista Renata Cafardo, no Estadão. O furto foi descoberto dois dias antes do exame e as provas tiveram de ser adiadas, prejudicando mais de 4 milhões de estudantes e causando prejuízos milionários. O material foi roubado de dentro da gráfica. Por conta disso, o esquema de segurança foi aprimorado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

O Enem se tornou um dos três maiores vestibulares unificados do mundo, ao lado do "gao kao", aplicado na China, e do "Scholastic Aptitude Test (SAT)", nos Estados Unidos. É a principal porta de entrada para o ensino superior hoje no país.

Deputados de partidos de oposição disseram, em entrevista coletiva nesta quarta (16), que querem ouvir o ministro da Educação, Milton Ribeiro, e o presidente do Inep, Danilo Dupas. Na semana passada, 37 servidores do Inep pediram demissão coletiva. Os motivos não foram esclarecidos.

Uma reportagem do Fantástico (TV Globo) deste domingo (14), mostrou que houve tentativas de interferir no conteúdo das provas, intimidação e indicou o despreparo de Dupas, atual presidente.

O deputado federal Ricardo Barros (Progressistas-PR) afirmou que a causa seria ideológica. "Eles [que se demitiram] percebem que não vão se encaixar no novo projeto e acabam criando um fato, para parecer que eles é que estão saindo. Mas eles iam ser saídos mesmo. Está tudo certo, não tem nada demais", disse. O ministro Milton Ribeiro afirmou que não houve qualquer interferência.

Na campanha de 2018, Bolsonaro prometeu que seus ministros seriam escolhidos a partir de critérios técnicos. Mentiu. Botou militares em cargos-chave e criou uma ala ideológica para dar suporte às suas ideias, ganhando capilaridade nos órgãos. Aparelhou instituições como as Forças Armadas, a Polícia Federal, o sistema de Justiça, a Polícia Militar e até o Inep. É urgente investigar.