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Maria Carolina Trevisan

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Escuridão: cegueira do Estado contribuiu para morte de menina na Bahia

Igreja de São Sebastião, em Caraíva, na Bahia - Getty Images
Igreja de São Sebastião, em Caraíva, na Bahia Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

17/12/2021 04h00

Toda perda de vida deve ser sentida. Quando se trata de uma adolescente, esse sentimento se aprofunda, gera mais tristeza, revolta, indignação e impõe a necessidade de compreender a sequência de acontecimentos que levaram a uma consequência tão drástica.

Se essa perda ocorre em um pequeno vilarejo, não há quem não se sinta responsável. O luto, a dor e a sensação de impotência passam a habitar a comunidade. Mães, moradores, líderes comunitários, professoras, assistentes sociais se perguntam como deixamos que isso acontecesse, outorgando a si mesmos uma responsabilidade que deve ser compartilhada pela família, pela sociedade e também pelo Estado. Está na nossa Constituição: crianças e adolescentes são prioridade absoluta.

Na semana passada, no meio da escuridão e da sequência de tempestades que alagou o sul da Bahia, uma menina de 14 anos desapareceu em Caraíva. No dia seguinte, ela foi encontrada sem vida por moradores. Era uma adolescente. Tinha só 14 anos e vivia em condições de vulnerabilidade. Ainda não era uma mulher. Deveria estar coberta por uma rede de garantia de direitos da infância, que liga a sociedade civil à proteção do Estado e às políticas públicas da infância e adolescência, um marco estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Até o momento, a única informação que pode ser atestada é a de que a adolescente foi encontrada sem vida. Dizer que foi fruto de uma violência ou outros fatores é especulação. Os laudos que podem contribuir para a investigação não estão prontos. Qualquer coisa que se diga além serve ao sensacionalismo e ao justiçamento.

Mas é possível refletir sobre as ausências que levaram à morte dessa menina.

Caraíva é um local naturalmente solidário. Esse cuidado com o outro faz parte da essência de uma comunidade que sempre se organizou para dar conta de suas próprias questões. É o vilarejo mais antigo do Brasil, data de 1530, mas o Estado é pouco presente. Há a escola, que estava atenta à adolescente, existe a ONG Caraíva Viva, que também atendia a menina com atenção e cuidado, o posto de saúde, que hoje tem uma médica atuante, os moradores, que de diferentes formas cuidavam da menina e de sua irmã mais nova. Essas instâncias funcionaram até um limite. Mas não puderam evitar a perda.

É possível que tenha faltado atenção do poder público, do conselho tutelar. São competências que vão muito além da presença ostensiva da Polícia Militar, que pode inibir certos comportamentos violentos, mas não garante que ninguém esteja a salvo da violência da omissão. A Polícia Civil iniciou as investigações. O Ministério Público também tem o dever de acompanhar o andamento, para que se evite abusos na ânsia de encontrar um culpado, dada a comoção social gerada também pelas redes sociais. O MP pode ajudar a entender onde a rede de proteção falhou para que situações como essa não aconteçam mais.

É compreensível a mobilização que se faz via redes sociais e a vontade de falar. Mas isso é também perigoso, pode escapar para uma sanha justiceira que não contribui para construir condições de vida melhores. Caraíva não é um lugar cheio de predadores. Muito pelo contrário. É um local em que os nativos e os moradores mais antigos estão acostumados ao cuidado coletivo. E isso é parte do encantamento que o vilarejo gera nos visitantes.

Na noite em que a adolescente desapareceu não havia luz elétrica na vila havia dois dias. Chovia muito, municípios vizinhos ficaram inundados. Outras vidas desapareceram nos arredores. A vila estava envolta em breu, isolada do resto do mundo, sem comunicação. O contexto favorecia um desfecho trágico.

Não é suficiente compreender o que houve no fato em si. É preciso refletir sobre essa escuridão imposta pela chuva, mas também expressa no descaso do poder público com a região e, por consequência, com a menina. Uma cegueira que fez com que o Estado não a enxergasse.

Caraíva e Xandó, a aldeia indígena que também é vítima do descaso do poder público, passaram por um fenômeno de gentrificação e exploração durante a segunda onda da pandemia. Muita gente se mudou para o vilarejo para cumprir home office, comprou e construiu. Muito dinheiro entrou. Houve um crescimento desordenado, sem estrutura. Pessoas com projeção em redes sociais contribuíram para influenciar uma ocupação irresponsável, resultando em um turismo predatório, que não se preocupa com a comunidade local. Gente estranha ao modo de vida dali. O dinheiro não compra tudo.

Com a volta ao presencial, com a abertura de Miami e afins, uma turma que não tinha mesmo nada a ver com o local, se deslocou. Deixou para trás a falta de estrutura, os preços elevados, leitos vazios, desemprego. Alimentou a cegueira e partiu.

Como qualquer lugar no Brasil, o vilarejo não está imune à violência, à negligência, à especulação imobiliária, às disputas políticas. Sofre com o abandono.

O que, por fim, é importante entender é que a luz dos direitos da infância, da proteção que o Estado deve garantir a crianças e adolescentes, se apagou para essa menina antes mesmo do apagão em si, antes mesmo da perda de sua vida. Isso não pode mais acontecer. Justiça é também fortalecer essa rede de proteção, além da segurança nas ruas. Não tem a ver com instituir um estado policialesco num dos locais mais belos, amorosos, alegres e musicais que existem no nosso país. Tem a ver com cuidado, olhar e acesso a direitos.