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A indefensável Europa: por que a França não vê jogador negro como cidadão?

Kylian Mbappé comemora gol da França na final da Copa do Mundo. - eLIGA
Kylian Mbappé comemora gol da França na final da Copa do Mundo. Imagem: eLIGA

Colunista do UOL

23/12/2022 04h00

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Uma civilização que se mostra incapaz de resolver os problemas que seu funcionamento provoca é uma civilização decadente. Uma civilização que opta por fechar os olhos para seus problemas mais cruciais é uma civilização doente. Uma civilização que se esquiva diante de seus princípios é uma civilização moribunda"
Aimé Césaire, em "Discurso sobre o Colonialismo" (1955)


O livro publicado pela Presence Africaine inspira o nome dessa coluna coletiva. Nele, Césaire não poderia estar mais certo.

Após a derrota para a Argentina, nos pênaltis, na final da Copa do mundo do Catar no último domingo (18), o jogador Aurélien Djani Tchouaméni, que perdeu um dos pênaltis decisivos, sofreu uma série de insultos racistas por torcedores franceses. Os atacantes Coman e Colo Muani também foram alvo de ofensas.

Esse tipo de agressão não está restrito à França. Em 2021, Marcus Rashford, Jadon e Bukayo Saka, da Inglaterra, também sofreram ataques racistas após errarem os pênaltis na decisão da Eurocopa daquele ano contra a Itália. O que há de comum entre todos esses casos? Os jogadores são negros.

A tensa relação entre as seleções europeias e seus jogadores atinge até mesmo aqueles mais consagrados. O atacante Karim Benzema, do Real Madrid, deu a seguinte declaração em 2011:

Quando jogo bem, sou francês, quando jogo mal me dizem que sou árabe."

O atacante Romelu Lukaku, da seleção belga, disse algo semelhante:

Quando as coisas vão bem, eles me chamam de atacante belga. Quando não correm bem, sou o atacante belga descendente de congoleses."

Esses são apenas alguns exemplos de como o racismo e o fantasma do colonialismo rondam o mundo do futebol, que, em grande medida, reflete as tensões nas sociedades europeias a respeito dos descendentes de imigrantes.

Franceses negros ou negros franceses?

No segundo tempo da final da Copa do Catar, a seleção francesa em campo era formada quase exclusivamente por jogadores negros. A introdução de jogadores filhos de imigrantes nas seleções europeias ganhou muita força no final da década de 1990. Na seleção francesa de 1998, o craque do time, Zinedine Zidane, filho de pais argelinos, conduziu o time ao campeonato mundial. Também fazia parte daquela seleção o zagueiro Lilian Thuram, nascido em Guadalupe, território francês no Caribe, e que migrou para Paris ainda criança.

A presença de jogadores negros incomodou o ex-líder da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen, que sempre fez campanha anti-imigração. Em 2006, ele disse a seleção tinha "muitos negros". Thuram respondeu:

Não sou negro, sou francês. Le Pen deveria saber que, assim como existem negros franceses, existem loiros e morenos, e não são convocados para a seleção por sua cor, mas por serem franceses."

De alguma maneira, a fala de Len Pen ecoa o posicionamento de vários grupos da sociedade francesa, para quem a população negra é vista num segundo degrau de cidadania.

A imprensa brasileira também vocalizou, sob outra ótica, essa perspectiva. Analistas de futebol chegaram a afirmar que a África já havia ganhado uma Copa do Mundo (2018), com a seleção francesa, repleta de jogadores filhos de imigrantes africanos. Não há nada mais equivocado. Quem venceu foi a França, com jogadores franceses, negros, como afirmou Thuram em 2006. Esse tipo de afirmação nega a cidadania plena aos imigrantes (e seus filhos).

É como se apenas os franceses brancos pudessem fazer parte do mundo francês, enquanto os outros seriam cidadãos de segunda categoria. Servem para o futebol (quando ganham), e mesmo assim tem a sua nacionalidade e culturas questionadas.

Esse tipo de fala perpetua as diferenças e a exclusão nas quais racismo e colonialismo se confundem e se retroalimentam. E nessa categoria de "quase-cidadãos" se incluiriam africanos, muçulmanos e árabes. Mais uma vez, Aimé Césaire vai no ponto:

Se a Europa Ocidental não assumir, na África, na Oceania, em Madagascar, ou seja, às portas da África do Sul, nas Índias Ocidentais, ou seja, às portas da América, a iniciativa de uma política de nacionalidades, a iniciativa de uma nova política baseada no respeito pelos povos e pelas culturas (?), a Europa terá perdido sua última chance e, com as próprias mãos, puxará sobre si mesma a mortalha das trevas."

E por falar em árabe?

Sim, Marrocos faz parte da África

Desde a vitória do Marrocos sobre Portugal e sua inédita passagem para as semifinais da Copa, uma das discussões que tomou as redes sociais é se Marrocos é um país africano ou árabe. O debate parece absurdo — e é —, mas vamos lá.

A expansão do Islã em direção ao norte da África, a partir do século 7, não desafricanizou (seja lá o que isso signifique) a região. Apenas a islamizou. Comunidades locais adotaram o Islã como sua fé, mas não foi um processo rápido. Fosse pelo comércio, pela conquista ou pela negociação, a religião, trazidao por comunidades árabes, foi bem-sucedida em se enraizar na área que engloba o Saara. Juntamente com ela, comunidades árabes também se assentaram na região, de modo que o Marrocos converteu-se, ao mesmo tempo, em país árabe, muçulmano, sem nunca deixar de ser africano. Ser árabe relaciona-se á origem étnica dos seus habitantes.

De resto, outras regiões também receberam influências muçulmanas. Mercadores árabes cruzaram o Sahel e chegaram até a África subsaariana (a África negra, como gostam de dizer). Relatos de viagem dos séculos 13, 14 e 15 estão disponíveis para mostrar esse enraizamento.

Hoje em dia, a África é o segundo maior continente com maioria muçulmana. No norte da África a presença é avassaladora. O Marrocos, alvo da polêmica, tem 98,7% de muçulmanos. Mas a Nigéria, na África Ocidental, tem 50% de habitantes declarados como seguidores da lei do profeta Mahommad. E nem estou me aprofundando na África Oriental, na qual a população muçulmana também é abundante.

Aliás, o Brasil recebeu uma porção significativa de escravizados muçulmanos trazidos da África. Os haussás, do norte da atual Nigéria, e os iorubás muçulmanos, os malês, tiveram um peso importante (demográfico, cultural e político) na Bahia do século 19. Estes últimos lideraram a maior revolta urbana de cativos das Américas, a Revolta dos Malês, em 1835.

Já que falei de haussás, malês e do Brasil, cabe outra questão: a África que importa é somente aquela vinculada ao famigerado comércio negreiro? A experiência africana retratada na mídia brasileira precisa do Brasil como fiador, e as populações africanas são apenas aquelas tocadas pelo tráfico e pela escravidão transatlântica? Como escrevi em texto desta coluna UOL em maio deste ano, o continente é vasto, composto de mais de 50 países, com culturas diversas. Criar um "tipo ideal" de África é negar a pluralidade do continente. É preciso fazer parte da "África negra", com ligações com o Brasil, para ser África? É miopia. Infelizmente parece que muita gente não leu o texto e prefere continuar a repetir lugares-comuns sobre o outro lado do Atlântico.

Negar ao Marrocos, o primeiro time africano a fazê-lo, o seu lugar na geografia do continente por conta de suas influências do Oriente Médio (inclusive o árabe como língua) faz tanto sentido quanto dizer que o Brasil não é um país da América do Sul por ser uma ilha de falantes de português cercada por hispano-hablantes por (quase) todos os lados. Ou seja, faz sentido algum.

Mas essa história de negar aos países africanos seu lugar no continente é coisa antiga. Por muito tempo, a história do Egito foi ensinada de maneira totalmente separada do restante da história da África. É como se a civilização egípcia, tão imponente, a surpreender viajantes e conquistadores, não pudesse fazer parte do restante da África. Felizmente, ativistas, os blocos afro, como o Olodum ("Eu falei Faraó"), e um movimento na academia — puxado a partir de demandas dos movimentos sociais — têm lutado para desmistificar essas ideias sobre o continente.

A lei 10.639/03, que instituiu o ensino de História da África e afro-brasileira nas escolas e nas universidades, tem colaborado para retirar o continente desse local de invisibilização nos currículos escolares. Mas a considerar os posts das redes sociais dos últimos dias, a tarefa é árdua. Quando você se perguntar porque precisamos de mais disciplinas de História da África nas universidades e nas escolas como tema transversal, lembre-se dessa polêmica.

Mas, se o leitor ainda tiver alguma dúvida sobre se o Marrocos faz parte da África, sugiro que perguntem aos africanos. A torcida efusiva pelos representantes africanos na Copa de 2022 (Gana, Senegal, Tunísia, Marrocos e Camarões) é mais sonora do que a miopia sobre a variedade populacional e cultural do continente.