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Por que o samba é um intérprete coletivo do Brasil no pós-abolição?

A sambista Dona Ivone Lara, em show de 2013 - Denise Andrade
A sambista Dona Ivone Lara, em show de 2013 Imagem: Denise Andrade

Colunista do UOL

14/12/2022 04h00

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Em 1993, o Fundo de Quintal lançava a canção "A batucada dos nossos tantãs", um verdadeiro manifesto em defesa do samba. Já na primeira estrofe ("Samba, a gente não perde o prazer de cantar"), a música se mostra verdadeiro manifesto em defesa do samba. Na sequência ("E fazem de tudo pra silenciar") denuncia o esforço constante da invisibilização. Uma das características mais reconhecidas de nossa cultura popular lidava, e lida, de perto com a tentativa de apagamento.

No último dia 2, comemorou-se o Dia Nacional do Samba, instituído em 1964, no Rio de Janeiro. A data repleta de manifestações em todo o território nacional traz algumas reflexões: o que o samba tem a nos ensinar sobre a História do Brasil? O samba contribui para alterarmos a matriz de sentidos da população brasileira? Em outras palavras, qual o papel do samba sobre a concepção de sujeitos históricos?

Para lançar algumas respostas, é necessário compreender o que caracteriza o samba e sua história. Nei Lopes, sambista e seguramente um dos maiores pesquisadores do samba, afirma que a "espinha dorsal da música popular brasileira" é mais que um ritmo ou uma forma de cantar, é uma experiência completa, que passa por comportamento, culinária, vestimenta, etc. Assim, não é equivocado afirmar que o samba nos permite acessar experiências sociais complexas tanto quanto as traz em si mesmo.

As características tradicionais do samba remontam a liberdade negra ainda durante a escravidão, com a atuação principalmente de mulheres e homens escravizados nos portos de Angola e do Congo, que reconfiguraram os batuques africanos em terras brasileiras. isso fez com que tivéssemos diferentes formas ao longo do território, dentre elas o Partido-Alto e Samba-Enredo do Rio de Janeiro, Jongo ou Caxambu do sudeste, samba de roda do Recôncavo Baiano, Tambor de Crioula do Maranhão, como apresentou o etnólogo Edison Carneiro no documento histórico "Carta do Samba", de 1962.

Pesquisadores são consensuais em dizer: em meio a tamanha pluralidade, essa manifestação cultural é cria do pós-abolição. E, como sintetizou Edison Carneiro há 60 anos, capaz de expressar as "alegrias e as tristezas populares". E, como tal, nos permite percorrer múltiplas trajetórias que denotam a agências de indivíduos e de coletividades.

As agências e A gente

Um desses sujeitos é Eloy Anthero Dias, ou simplesmente Mano Eloy. Nascido no Vale do Paraíba em 1889, ele migrou ainda jovem para a então capital da República, o Rio de Janeiro. O homem negro logo ficaria conhecido em diferentes recantos daquela cidade que passava por grandes transformações e, como nos apresenta a historiadora Alessandra Tavares, teve trânsito nos terreiros de candomblé e nas organizações de trabalhadores portuários. Circulava principalmente no mundo carnavalesco, que começava a se firmar no Rio com as escolas de samba, como a Império Serrano da qual foi um dos fundadores. Não à toa, o título do livro da referida autora é "A Escola de Samba 'tira o negro do local da informalidade': Agências e associativismos negros a partir da trajetória de Mano Eloy (1930-1940)".

Jovelina Pérola Negra, nome artístico de Jovelina Farias Belfort, e fio condutor da análise empreendida por Jurema Werneck em "O samba segundo as Ialodês", também se fez notória através da escola fundada por Mano Eloy. No entanto, o fato de ser mulher foi decisivo para sua carreira como sambista iniciar quando já tinha 41 anos, no ano de 1985. A partir de então, não saiu do cenário do samba até 1998. Vinculada ao Partido-Alto, também conhecido como pagode, compôs e cantou sambas que se consagraram como grandes sucessos, aos moldes de "Luz do Repente" (Deixa comigo, deixa comigo. Eu seguro o pagode e não deixo cair ééé. Sem vacilar é é. Sem me exibir. Só vim mostrar, ééé. O que aprendi).

Ainda na mesma escola e com trajetória semelhante, tivemos Ivone Lara da Costa, a Dona Ivone Lara. Nascida no Rio no início dos anos 1920, ficou conhecida artisticamente somente nos anos 1970. A cantora e compositora era também enfermeira e assistente social e foi a primeira mulher a assinar um samba-enredo, em 1965. Em disco duplo, de 1986, lançado com Jovelina "Rainha Quelé", temos a canção em homenagem a Clementina de Jesus que demarcava a importância desta grande sambista. Em 1986 lança um disco duplo com Jovelina com uma canção em homenagem a Clementina de Jesus, "Rainha Quelé", demarcando a importância desta também grande sambista. Caracterizada pelo canto melódico, Dona Ivone Laraé identificada como a "griot de narrativa sincopada", nas palavras da pesquisadora Katia Santos (autora de "Ivone Lara - a dona da melodia") . Alusão direta à manutenção de aprendizados e seus compartilhamentos, bem como da síncopa (que, a grosso modo, identifica o ritmo de um som lento) do samba marcada pelo rítmico- melódico, como define Muniz Sodré em "Samba, o dono do corpo".

Histórias do pós-abolição

Elementos dessas três trajetórias nos permitem alertar para o que o samba têm nos ensinado sobre a História do Brasil enquanto intérprete coletivo de nossas experiências sociais. Observamos sentidos que convergem demonstrando como a experiência negra se construiu e ainda se constrói contrapondo impedimentos e tentativas de silenciamento, ora nos indivíduos catalisadores dessa cultura, ora nas letras e corporalidade negra que delas eclodem, bem como num olhar para a Escola de Samba.

Tanto Mano Eloy quanto Dona Ivone Lara tiveram sua data de nascimento discutida em pesquisas, porque os documentos não eram assertivos. isso denota um problema central do pós-abolição no que tange ao acesso aos direitos. Todas as trajetórias versam acerca de pessoas que tiveram de manter serviços nem sempre suficientemente remunerados em paralelo antes de se dedicar integralmente à música, o que nos permite compreender como se estabeleceu um mercado de trabalho marcado por raça e gênero, que em muito contribuiu para pessoas negras permanecerem na classe social menos abastada.

Não obstante, foi por meio do samba, principalmente na atuação nas ou através da Escola de Samba, que fez-se possível compartilhar outras narrativas acerca de uma experiência coletiva, marcada por deslocamentos, aprendizados e modos de fazer samba que, não à toa, foram discutidos entre fins de novembro e início de dezembro de 1962 no I Congresso Nacional do Samba. Neste evento definiram-se as características fundamentais que deveriam ser mantidas e foram publicadas por Edison Carneiro na "Carta do Samba".

Tais ações foram fundamentais para que diferentes vertentes do samba sejam reconhecidos como patrimônio imaterial da cultura brasileira, como o Samba de Roda do Recôncavo Baiano e o partido-alto, samba de terreiro e samba-enredo, do Rio de Janeiro. E foram ainda mais marcantes para que muitas e muitos de nós não perdêssemos o prazer de cantar, dançar e manter essa expressão tão nossa!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL