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Atrasada, nova lei do racismo corrige erro histórico do Brasil

As ministras Anielle Franco e Sonia Guajajara durante cerimônia de posse no Palácio do Planalto - Ueslei Marcelino/Reuters
As ministras Anielle Franco e Sonia Guajajara durante cerimônia de posse no Palácio do Planalto Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Colunista do UOL

19/01/2023 04h00

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Sabe o racismo recreativo praticado quando alguém, valendo-se do humor, expressa desprezo pela cultura ou pessoa negra, mas, quando questionado, diz "foi só uma brincadeira"? De acordo com a legislação que entrou em vigor dia 11 de janeiro de 2023, gestos como estes que nunca tiveram graça poderão ser penalizados.

No Brasil, tão recorrente quanto os xingamentos e humilhações públicas contra pessoas negras é a impunidade de quem pratica atos racistas. Essa permanência é uma forte demonstração da naturalização do racismo na cultura brasileira. Essa situação foi agravada pela legislação que estava vigente até semana passada.

Como fruto das reinvidicações do movimento negro, o racismo foi tificado em 1989 como crime pela Lei Caó, mas, em 1997, a Lei 9.459 estabeleceu uma diferenciação das sanções para as ofensas racistas direcionadas a uma pessoa e a discriminação racial dirigida à coletividade, consolidando uma abordagem limitada que já estava presente na Lei Afonso Arinos de 1951. Por exemplo, ofender uma pessoa negra com expressões de cunho racial foi entendido como injúria racial, cuja ação afetaria apenas o indivíduo. Já impedir alguém de ser contratado por conta de sua origem racial foi compreendido como racismo, porque englobaria toda a comunidade negra.

Assim, a injúria racial vinha sendo tratada como um crime menos grave, cuja punição poderia ser extinta após um prazo determinado, diferente do racismo, qualificado como imprescritível. Também era prevista a possibilidade da pessoa acusada responder em liberdade com o pagamento de fiança. Diante da dificuldade histórica de enfrentamento ao racismo no país, as denúncias acabavam sendo enquadradas como injúria racial e, na maioria dos casos, seus praticantes não eram responsabilizados.

O fato é que, conforme trata o jurista e professor Adilson Moreira, no livro Racismo Recreativo, todas as ofensas raciais possuem uma dimensão social, pois o sentimento de honra tem uma dimensão coletiva. Por essa ótica, os estigmas raciais afetam a reputação social de todas as pessoas negras e não apenas o indivíduo especificamente envolvido no episódio. Nesse sentido, separar a injúria racial da prática do racismo seria um equívoco e um desvio do enfrentamento ao problema de fundo.

O Brasil é signatário de tratados e convenções internacionais em que se compromete a combater o racismo. Dentre esses acordos, destaca-se a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), instituída pela ONU, cujo propósito foi o de delinear ações específicas que deveriam ser tomadas por governos e por todos os outros atores a fim de combater o racismo.

No que tange à Justiça, uma das tarefas assumidas pelo Brasil foi de revisar a legislação doméstica, a fim de identificar e abolir normas que acarretem discriminação, direta ou indiretamente. A distinção entre crime de injúria racial e racismo tem impedido o acesso à Justiça para as vítimas de racismo no Brasil. Foi no rastro desse entendimento que, em outubro de 2021, o STF decidiu que o crime de injúria racial não prescreve e que aos casos dessa natureza cabe a tipificação criminal como racismo.

Quarta-feira passada (11) durante a cerimônia de posse de Anielle Franco como ministra da Igualdade Racial e da Sônia Guajajara como ministra dos Povos Indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a projeto de lei aprovado em dezembro no Congresso Nacional, dando origem à Lei 14.532 que equipara injúria racial ao crime de racismo, sendo portanto conduta inafiançável e imprescritível, prevendo detenção de dois a cinco anos. A nova legislação altera a Lei Caó e o Código Penal de 1940, estabelecendo que o racismo e a injúria racial são crimes equivalentes. Ainda prevê pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e atos praticados por funcionário público. Também determina pena aumentada de 1/3 até a metade, quando as situações ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.

No quase apagar das luzes da Década Internacional Afrodescendente, a assinatura da Lei 14.532 demonstra o quanto o país tem sido condescendente com piadas e gestos de mal gosto, especialmente quando o alvo são pessoas negras.