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Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

22 de abril e 3 de maio: movimentos denunciam celebrações à colonização

Desembarque de Cabral em Porto Seguro, óleo de Oscar Pereira da Silva (1922). - reprodução
Desembarque de Cabral em Porto Seguro, óleo de Oscar Pereira da Silva (1922). Imagem: reprodução

Itan Cruz*

Colunista do UOL

29/04/2023 04h00

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O avanço dos debates públicos envolvendo racismo, genocídio das populações afro-indígenas, demarcação de terras e outras pautas historicamente denunciadas pelos movimentos negros e indígenas do Brasil tem demonstrado o quão constrangedor pode ser comemorar o 22 de abril como o "Dia do Descobrimento".

A propósito da dimensão controversa da fixação de efemérides, até por volta de 1817, a chegada dos portugueses era rememorada em 3 de maio, como defendido nos estudos do historiador lusitano Gaspar Correia. Correia levou em consideração os nomes com os quais seus conterrâneos batizaram os lugares por onde passaram e, diante do nome Terra de Vera Cruz, concluiu que 3 de maio, dia da festa da Santa Cruz, seria a data que marcaria o avanço dos portugueses sobre as terras do Novo Mundo.

No entanto, a famosa carta de Pero Vaz de Caminha, repercutida em 1817, redefiniu a celebração no calendário do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Com base em publicação feita pelo padre Aires de Casal, Caminha assim estabeleceu outro marco: "Neste dia [quarta-feira, 22 de abril de 1500], a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome - o Monte Pascoal e à terra - a Terra da Vera Cruz".

Em 14 de janeiro de 1890, o Governo Provisório da República instituiu novamente o dia 3 de maio como "consagrado à comemoração da descoberta do Brasil" entre "os dias de festa nacional". Décadas depois, com a vitória da Revolução de 1930, Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório, considerando que os feriados poderiam e deveriam ser reduzidos em "manifesta vantagem do trabalho nacional", suprimiu o evento do calendário de feriados nacionais.

No fim da década de 1940, a data retornaria ao centro das discussões comemorativas do país. Em 21 de abril de 1949, o Diário de Notícias do Rio de Janeiro, publicou que a Diretoria do Ensino Secundário do Ministério da Educação, ligada ao Ministério da Educação e Saúde, estava comunicando aos estabelecimentos de ensino um outro posicionamento oficial do governo. A Diretoria deliberou que, "em virtude de haver a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados decidido que o dia 22 de abril passasse a ser considerado o Descobrimento do Brasil, aquela data, e não 3 de maio, deve ser consagrado [sic] à comemoração do aludido fato histórico". Desde então o dia 22 de abril se consolidou no calendário nacional como data comemorativa, "o dia do descobrimento".

Uma data, muitas violências

Sem precisar se valer da ideia de descobrimento da América, povos indígenas estabeleceram-se por essas terras há milhares de anos, vivendo com suas múltiplas culturas em sociedades distintas. A posterior persistência em reservar uma data às comemorações sobre o "descobrimento" português demonstra, por certo, a afirmação de um projeto nacional calcado na valorização das heranças europeias em detrimento do reconhecimento do protagonismo indígena, do seu genocídio e toda a sorte de violências pelas quais o empreendimento colonial do Velho Mundo foi viabilizado.

Estima-se que, por volta de 1500, quando os portugueses atracaram nesta parte do mundo, existiam entre dois e cinco milhões de indígenas no atual território do Brasil, hoje considerados como números modestos para a época. Atualmente esse total gira em torno de aproximadamente 900 mil pessoas, mas é certo que se trata de uma subnotificação alimentada pela ideologia da mestiçagem. Calcula-se também que o tráfico de africanos, implantado e consolidado ainda ao longo da colonização, tenha trazido cerca de 4 milhões de indivíduos para trabalharem forçadamente em benefício do Império português, com todas as agruras que a escravidão impunha.

A Constituinte de 1823, que moldou os parâmetros legais de cidadania seguidos por mais de meio século no Brasil independente, favoreceu os portugueses que quisessem pleitear o status de cidadão brasileiro, enquanto indígenas, escravizados nascidos aqui e africanos traficados foram excluídos dessa possibilidade. Mais recentemente, o descaso com os povos yanomamis e a continuidade do sistemático homicídio de jovens negros no país, depõe contra as celebrações do "descobrimento".

Indígenas marcham em Brasília durante a 18ª edição do Acampamento Terra Livre, que reuniu quase 8 mil pessoas para discutir direitos constitucionais dos povos originários. - Antonio Molina/Foto Arena/ Folhapress - Antonio Molina/Foto Arena/ Folhapress
Indígenas marcham em Brasília durante a 18ª edição do Acampamento Terra Livre, que reuniu quase 8 mil pessoas para discutir direitos constitucionais dos povos originários.
Imagem: Antonio Molina/Foto Arena/ Folhapress

As manifestações dos movimentos indígenas e negros têm sido fundamentais no sentido de despertar o constragimento em encontrar qualquer motivo de orgulho pelo dia 22 de abril. Mobilizações promovidas pelos povos originários, como o Acampamento Terra Livre (ATL) e o Abril Vermelho, promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), escancaram lutas seculares. Ainda hoje, os índices sociais ecoam a precariedade das condições de vida desses grupos sociais, fundamentais para a construção deste país.

No entanto, apesar de todas as violências empreendidas contra povos afro-indígenas, ainda estamos aqui, contrariando esse empreendimento colonial baseado na subjugação, no genocídio e na criminalização das nossas populações. Há, portanto, um bom apanhado de razões para dizer que comemorar o 22 de abril seria tão somente comemorar a inauguração de um projeto colonizador de extermínio dos povos indígenas e africanos no Brasil, constantemente reeditado pelo racismo ainda presente entre nós.

Não há do que se orgulhar, há o que refletir

É preciso reelaborar novos sentidos para a data, considerando toda a violência deflagrada a partir dela, valorizando as pautas trazidas pelos movimentos sociais e evidenciando os enfrentamentos de indígenas e negros em todo o processo colonizador. As datas comemorativas são marcos políticos importantes, utilizadas para mobilizar sentimentos e significados, diante dos quais o dia 22 de abril merece especial atenção. Não é à toa que, historicamente, indígenas põem em xeque a sua celebração.

Muito recentemente, grupos que questionaram, tombaram e intervieram em estátuas celebrativas de figuras colonizadoras na América acabaram por pressionar ainda mais todos e quaisquer signos das investidas europeias no Novo Mundo. Estátuas de Cristovão Colombo, Hernán Cortés, Gonzalo Quesada, Sebastián de Belalcázar, Alonso de Mendoza, dentre outros, foram afrontadas, derrubadas e tingidas uma a uma, no México, na Colômbia, na Bolívia e em outros países da América Latina. São denúncias de toda a violência trazida pelos processos colonizadores deste lado do Atlântico.

O compromisso do Brasil, mas não só dele, de todos os países colonizados, deve ser o de sempre prezar pela justiça com os povos historicamente oprimidos e subalternizados ao longo da construção de suas nações. Desta forma, pouco importa se a data em que os portugueses chegaram seja o dia 3 de maio ou o 22 de abril, o importante será como nós podemos promover uma reflexão socialmente comprometida com aqueles que mais sofreram na tessitura sangrenta formadora deste país.