Topo

Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Acervos fotográficos ressignificam memória negra para além da escravidão

Fotografias de Luiz Gama e João Cândido. - Biblioteca Nacional
Fotografias de Luiz Gama e João Cândido. Imagem: Biblioteca Nacional

Colunista do UOL

21/06/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O que fotografias de pessoas negras não subjugadas à escravidão presentes em espaços destinados à guarda da memória tem a nos ensinar? Podemos pensar a memória como um direito em um país que insiste em atribuir lugares sociais a partir de uma ideia de raça, de classe, de gênero e de tantos outros marcadores? E o que tudo isso tem a ver com cidadania e antirracismo? Convido a quem nos lê a refletir tendo como ponto de partida a liberdade negra.

Um fotógrafo amador gaúcho de nome Luiz do Nascimento Ramos, mais conhecido como Lunara, realizou uma série de fotografias entre a década de 1890 e 1930. Registrou cenas cotidianas com ênfase para aquelas vivenciadas na parte baixa de Porto Alegre (RS), nos "territórios negros", como nos apresenta a geógrafa Daniele Vieira.

Um desses registros foi intitulado como "Deixa disso, nhô João" e data de 1900. Nele estão presentes um homem e uma mulher, cujos nomes não foram registrados, de mãos dadas, aparentemente idosos, em frente a um casebre em uma região contrastante com os ares de modernidade que em breve alcançaria a cidade.

A foto está completamente inserida num contexto de reorganização das relações sociais que marca o pós-abolição mas, além disso, nos permite observar um traço de afeto e sobretudo de existência em um território que já passava pela construção social de um imaginário de invisibilidade da população negra.

Fotografia intitulada "Nhô João deixa disso", de meados de 1900, do fotógrafo gaúcho Luiz do Nascimento Ramos, mais conhecido como Lunara. - Acervo Instituto Moreira Sales - Acervo Instituto Moreira Sales
Fotografia intitulada "Nhô João deixa disso", de meados de 1900, do fotógrafo gaúcho Luiz do Nascimento Ramos, mais conhecido como Lunara.
Imagem: Acervo Instituto Moreira Sales

Dez anos depois da foto do casal, a imagem de outro gaúcho correu o mundo. Tratava-se de João Cândido, identificado como marinheiro de 1ª classe. Aqui, o registro está vinculado diretamente com os mundos do trabalho. O marinheiro negro foi importante liderança da Revolta da Chibata (Rio de Janeiro, 1910), fazia parte de um grupo de pessoas, sobretudo negras, que denunciavam a manutenção de práticas escravistas de punição, dentro da Marinha do Brasil.

Não cabe aqui uma análise pormenorizada da atuação de Cândido, algo que foi feito com muito rigor na produção historiográfica de Álvaro Nascimento. O que importa aqui é que o registro profissional do marinheiro nos ajuda a refletir também sobre direitos de cidadania para a população negra.

João Cândido Felisberto - Reprodução - Reprodução
João Cândido Felisberto
Imagem: Reprodução

João Cândido nasceu na cidade de Encruzilhada do Sul, em 24 de junho de 1880, ainda durante a existência da escravidão, mas que nunca foi subjugado a ela, assim como tantos outros. Assim, as discussões que hoje conhecemos como trabalhistas, neste caso em específico, ampliam-se para cidadania e limites impostos à população negra com base em uma ideia de raça que, a partir das elites, tenta manter o status do escravismo em tempos de abolição.

Recuando no tempo, possivelmente nos anos 1870 ou 1880, temos a fotografia do advogado, orador, abolicionista e escritor Luiz Gama. Gama, que se vivo estivesse estaria de aniversário hoje, nasceu em Salvador, na Bahia, nesse mesmo 21 de junho, mas em 1830.

Uma foto posada, aos moldes da de João Cândido, enuncia a respeitabilidade a partir da postura e de vestimentas condizentes com suas atuações.

Assim, a exemplo do que as pesquisas desenvolvidas por historiadoras como Ana Flávia Magalhães e Lucimar Felisberto apontaram, pessoas negras que vivenciaram o período escravista, reduzidas a ela ou não, puderam construir possibilidades coletivas de liberdade negra para os seus iguais, disputando os termos da cidadania e promovendo mobilidade social.

Romperam, assim, com aquilo que Lélia González e Carlos Hasembalg (1982) identificaram como a imposição de um lugar ao negro na sociedade brasileira, o que, por sua vez, viria a se consolidar como um marco de alteração nas investigações cientificas sobre racismo no Brasil e rompimento com a noção de negro como problema em si mesmo.

O direito à memória

Encarar essas imagens e tantas outras presentes nos acervos de instituições destinadas à preservar a memória nacional, nos permite refletir sobre os suportes para os registros de memória, mas também interpor, ou minimamente disputar, novos enquadramentos para a leitura das fotografias seguindo os ensinamentos fundamentais de Ana Flávia Magalhães em texto publicado no livro "Insumos para ancoragem de memórias negras".

Luiz Gama por volta de 1880 - Domínio Público - Domínio Público
Luiz Gama por volta de 1880
Imagem: Domínio Público

Desta forma, podemos construir novos repertórios capazes de sensibilizar e de explicitar o rompimento com uma autorização para considerar experiências negras desnecessárias. É essa autorização, por vezes mantida sem reflexão, que permite a manutenção daquilo que a filósofa Sueli Carneiro desenvolveu a partir da realidade brasileira como epistemicídio, ou seja, a morte simbólica das formas de pensar e se colocar no mundo de pessoas não brancas, e do que ativistas tem denunciado como genocídio da população negra.

Nossos suportes de memória e as memórias que deles emergem nos permitem extrapolar o condicionamento do racismo, sem deixá-lo de lado, mas evidenciando que as experiências negras do vivido não se reduzem a esse enquadramento. Isso já tem acontecido com acervos privados, como o trabalho magistral da historiadora e fotógrafa gaúcha Irene Santos.

Ao fazermos perguntas como as que deram início a essa reflexão contribuímos para o adensamento de políticas de memória que deem conta da nossa pluralidade enquanto população brasileira.

O que está na base das matrizes de pensamento que durante muito tempo, e ainda hoje, apresentaram narrativas em que todos aqueles que são lidos como outros sejam considerados desajustados e problemáticos.

As fotografias oferecem múltiplos indícios para pensar um elemento básico, porém, ainda em disputa: a humanidade. E o reconhecimento de todas as camadas dessa humanidade faz-se crucial para que a cidadania seja efetiva e de amplo acesso.

As fotografias dos dois aniversariantes dessa semana, João Cândido e Luiz Gama, mas também daquelas duas pessoas negras em um gesto de afeto e respeito registrados pelo fotógrafo Lunara, cujos nomes sequer entraram para os anais da história, podem ser interpretadas como catalisadoras para aquilo que temos chamado de letramento histórico antirracista.

Algumas das respostas que dispomos sobre as fotografias nos permitem afirmar que aquelas pessoas não eram desajustadas e tampouco problemáticas. Eram, antes de tudo, seres humanos imersos em uma experiência coletiva repleta de afeto, marcada pelo trabalho e pela luta por uma justiça efetiva que viabilizasse cidadania.

Olhar para tudo isso nos possibilita disputar presente e futuro, buscando romper com o continuum marcado pelo racismo que atravessa e condiciona nossas experiências e nossa história, tanto enquanto processo quanto como escrita.

O reconhecimento de Luiz Gama pelo Estado nacional brasileiro, que instituiu em 31 de março passado o "Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos" em substituição a Ordem do Mérito Princesa Isabel, já é um bom indício do que está sendo construído.

No entanto, as disputas que até hoje impediram a concretização do Museu em homenagem a João Cândido no município em que viveu e veio a falecer, São João de Meriti (RJ), bem como a falta de indenização aos seus familiares pelo Estado nacional, e as tentativas de impedir uma reformulação do hino do Rio Grande do Sul, que faz referência à população escravizada como desprovida de virtude, demonstram que essa discussão ainda tem muito o que alargar-se.

Aqui, no Rio Grande do Sul, junho é consagrado por praticantes do batuque ao orixá da comunicação e que abre os caminhos Bará, saudado no último dia 13, e ao orixá da justiça Xangô, que será saudado no próximo dia 29. Oxalá o mês corrente possa fazer jus aos seus aniversariantes para que possamos ampliar a discussão em torno do direito à memória.