O que dizem os investimentos do Estado e do Banco do Brasil na escravidão
Em abril de 1889, pouco antes da abolição da escravidão completar o seu primeiro ano, uma comissão de homens negros "libertos de várias fazendas próximas à estação do Paty, município de Vassouras", localidade do interior do Rio de Janeiro, redigiu uma carta a Ruy Barbosa, político influente do Império. Seus signatários discorreram sobre o não cumprimento da lei de 28 de setembro de 1871 no que dizia respeito ao oferecimento de educação aos filhos livres de mulheres escravizadas, conhecidos como "ingênuos".
Naquele momento em que já não existia escravidão legal no Brasil, esses homens solicitavam educação aos seus filhos por considerarem que eles estavam "imersos em profundas trevas". "É preciso esclarecê-los e geniá-los por meio da instrução", diz um trecho do documento.
Os signatários da carta achavam "justo" que o dinheiro que alimentava o fundo de emancipação fosse revertido "para a educação dos filhos dos libertos". Este fundo foi criado em 1871, compondo a lei de 28 de setembro, com o objetivo libertar pessoas escravizadas a partir da reunião de valores de diferentes origens, a exemplo de taxas sobre transações comerciais envolvendo os próprios escravizados, doações, heranças, entre outros.
Seja como for, os libertos de Vassouras, além de afirmarem que compreendiam "perfeitamente que a libertação partiu do povo, que forçou a Coroa e o parlamento a decretá-la", também destacaram que sabiam da existência dessa quantia, mesmo após a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888.
Era de relativo consenso entre os libertos que a educação e a instrução deveriam ser garantidas às pessoas egressas do cativeiro - inclusive e especialmente às crianças negras, que dariam continuidade às gerações futuras. Tal opinião era compartilhada por mulheres como Victória, liberta, que em outubro de 1888 apelava às autoridades da então província da Bahia que fizessem seu ex-senhor lhe entregar seus três filhos por querer dar-lhes educação para que fossem "úteis à pátria".
Fato é que os remetentes de Vassouras foram completamente ignorados. Tanto é que essa referida carta foi republicada na imprensa do Rio de Janeiro, na República, em 1890, procurando sensibilizar Ruy Barbosa, então ministro da Fazenda, e a opinião pública em relação à questão. Ruy não fez nada a este respeito, tampouco a República, o "Regime da coisa pública". A abolição persistia incompleta.
O fundo previsto em 1871 foi modificado 14 anos depois, que o repartiu em três partes. Duas voltadas para custear a libertação de escravizados e uma terceira parte direcionada para "subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte de colonos que forem efetivamente colocados em estabelecimentos agrícolas de qualquer natureza".
Ora, se desde 13 de maio de 1888 não havia mais escravizados legalmente assim reconhecidos pelo país, onde estaria o dinheiro que para esta finalidade estava sendo recolhido pelo Estado? Esta é a questão que tento responder em artigo prestes a ser publicado e que mostra boa parte da quantia que deveria ter a população negra como beneficiária, sendo direcionada para custear a vinda de imigrantes, destacadamente italianos, para trabalharem nas fazendas de café do sudeste do país.
"Auriverde pendão de minha terra"
Na última semana, um grupo de 14 historiadores embasaram um inquérito movido pelo MPF (Ministério Público Federal), o qual visa obter mais informações sobre a participação do Banco do Brasil nas atividades do tráfico de africanos(as) escravizados(as) e na escravidão dessas mesmas pessoas no país. A ação, que tem como foco uma das principais instituições financeiras nacionais, busca respostas importantes sobre possíveis contribuições para a promoção e/ou financiamento desses negócios espúrios, além de revelar vínculos com indivíduos e famílias direta ou indiretamente ligadas e beneficiadas por essas iniciativas.
Não foi à toa, que desde 1870 Castro Alves, crítico ferrenho do tráfico de pessoas africanas e da escravidão, escreveu em sua obra "O Navio Negreiro": "Auriverde pendão de minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança, / Estandarte que a luz do sol encerra" ao relatar a bandeira do Império do Brasil que tremulava sobre um navio negreiro. Com esta cena, o famoso poeta baiano sublinhava a responsabilidade do Estado e todo o seu aparato - inclusive os bancos - no financiamento daquele "sonho dantesco", como denominou o comércio de seres humanos.
Em suas investigações sobre o comércio de escravizados na província do Rio de Janeiro, ao longo da segunda metade do século 19, o historiador Robert Slenes afirma que "na década de 1870, o Banco do Brasil e outros bancos abriram ou ampliaram suas carteiras hipotecárias, oferecendo empréstimos [aos fazendeiros escravistas fluminenses] a longo prazo com taxas de juros substancialmente abaixo das cobradas em outras circunstâncias". Este historiador avaliou que "o impacto desses bancos sobre o mercado de crédito local foi muito significativo". Isso envidencia o ímpeto desse banco em investir na escravidão até pouco tempo antes da abolição. Ainda segundo Slenes, só em 1884, quatro anos antes do 13 de maio, que o Banco do Brasil "suspendeu por tempo indefinido sua concessão de empréstimos hipotecários aos fazendeiros".
A suspensão desses empréstimos advinha do fato de que já se tornava arriscado demais conceder créditos a homens que baseavam significativa parte das suas fortunas em seres humanos escravizados. Justamente em 1884, a pressão de cativos e abolicionistas sobre o parlamento fez com que Manuel Pinto de Souza Dantas, enquanto primeiro-ministro, tentasse conduzir mais uma lei emancipacionista, causando insegurança às instituições de crédito, como o próprio Banco do Brasil.
Este inquérito por si só já é uma conquista na medida em que propõe um debate urgente, público e franco sobre o passado nacional escravista, responsável pela economia do país, mas também pela desigualdade social que lhe é intrínseca. Escancara a necessidade de compreender o papel de instituições tão históricas quanto poderosas ao longo de todo o regime escravista que desumanizou pessoas, separou famílias, humilhou, torturou, criminalizou e assassinou a população negra deste país por quase quatrocentos anos.
O encontro do Brasil consigo mesmo
O tráfico de africanas e africanos, denominado de "infame comércio" pelos seus combatentes, bem como a própria escravidão, movimentaram fortunas, geraram créditos, ergueram palácios, palacetes e edifícios públicos e particulares, financiaram lavouras, expandiram fazendas, robusteceram heranças de famílias vistosas que ainda hoje passam de geração em geração os rendimentos daquelas violentas atividades. O dinheiro oriundo da comercialização da vida de seres humanos continua a robustecer o fosso social que separa ricos e pobres no país.
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Quero receberAs pessoas negras acreditam no Brasil e querem fazer parte dele na sua completude, o que inclui não só um acerto de contas com o passado, mas também com o tempo presente. Os libertos de Vassouras demonstraram mais do que a consciência sobre a quantia reunida pelo Estado em favor da população negra para além do 13 maio, também destacaram a preocupação com a inserção das suas crianças no novo regime a partir da educação. Isto, por considerarem a educação fator fundamental nas suas estratégias de ascensão social, a fim de estabelecerem um distanciamento seguro dos horrores do cativeiro com toda a sua precariedade e violência.
Só é possível viabilizar a construção de um país verdadeiramente democrático e usufruir de um Estado verdadeiramente de direito a partir do momento em que o Brasil sentar à mesa para discutir sobre o passado que o constituiu enquanto país profundamente racista e desigual. A reivindicação dos libertos de Vassouras e a iniciativa do inquérito envolvendo o Banco do Brasil chamam a atenção para a luta centenária em busca de uma nação comprometida com a solução dos seus problemas sociorraciais que podem e devem ser minorados por meio de políticas de reparação histórica.
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