Foco na infância é arma contra 'efeito cascata' de problemas na educação
Com pouco mais de 30 mil habitantes — a maioria na zona rural —, Careiro Castanho, município no Amazonas, é uma entre 396 cidades brasileiras que estão investindo no diagnóstico da primeira infância, instrumento fundamental para acompanhar a educação e a saúde das crianças numa etapa da vida que, como mostram estudos da neurociência, tem se provado a mais importante para o desenvolvimento humano.
Em entrevista à coluna, Mônica Borba, que é especialista em educação infantil e educadora ambiental, falou sobre os desafios do município com questões sensíveis, como a gravidez na adolescência e a violência sexual de crianças e adolescentes. Segundo ela, tanto professores como pais e mães ainda encontram dificuldades para falar de sexualidade, cuidado e afeto com as crianças, o que contribui para a propagação de um tabu social.
Diretora executiva da Casa do Rio, organização sem fins lucrativos que atua na porção norte da BR-319, na Amazônia, Mônica traz detalhes do mapeamento da primeira infância em Careiro, considerando as dificuldades locais e as parcerias com o poder público para enfrentar estas questões.
Professora há quatro décadas, ela olha com otimismo para a maior autonomia da criança na escola. "Aprendizagem envolve brincar, cantar, ser livre, com autonomia para se expressar. Felizmente, a criança de hoje tem muito mais escuta. E, como toda novidade, esse é um desafio grande para a escola e para os pais", destaca.
Confira os principais trechos da entrevista.
Pode explicar para nós o que é, exatamente, o diagnóstico da primeira infância? De que forma ele é feito e qual a sua importância para as políticas públicas?
MÔNICA BORBA Esse diagnóstico é feito com dados federais, estaduais e municipais das áreas de educação, saúde e assistência. Trata-se de um "retrato" dos municípios, observando suas vulnerabilidades para traçar ações de forma intersetorial — o objetivo final é a construção de um plano municipal da primeira infância.
À luz da legislação, vemos um quadro da realidade local. Por exemplo, se a lei obriga o funcionamento de 50% de escolas de educação infantil, fazemos essa checagem, buscando mapear as dificuldades e elaborar diretrizes para o Plano Municipal de Educação (PME), que já está trazendo demandas da primeira infância.
Precisamos de um plano específico para essa área. Pensando na saúde, por exemplo, como é feito o pré-natal em Careiro? Descobrimos que a maioria das adolescentes que ficam grávidas, praticamente, não fazem um pré-natal.
Somente em 2021, foram 169 nascidos de mães adolescentes na cidade, uma proporção de 27,3% do total de nascimentos. É um retrato do Brasil?
Essa é uma questão cultural da região — é comum as pessoas engravidarem muito cedo. Como resultado, a jovem, que muitas vezes tem pais analfabetos, para de estudar e corre risco de ser expulsa de casa. Inclusive, há casos de gravidez, justamente, com o objetivo de provocar essa expulsão, devido à violência doméstica.
Há muitas questões sobre esse tema, mas eu lembraria que, na área da saúde, não existe um programa específico para escolher essa jovem grávida. Além disso, falta apoio para amamentação, enxoval, um acompanhamento mais amoroso e que conforte psicologicamente essas mães.
Um dos aspectos que tornam a 1ª infância decisiva é seu "efeito cascata" sobre as demais fases da vida. De que forma esse diagnóstico pode resultar em melhorias concretas na vida não apenas das crianças, mas das demais faixas etárias?
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Quero receberEsse avanço do debate da primeira infância se deve à neurociência — ela que vem trazendo à tona, cientificamente, a importância do desenvolvimento infantil, de modo que a criança tenha vínculos, amor e aconchego. Além disso, ela precisa ser escutada, ter contato com a natureza e seus elementos.
Na cabeça da maioria das pessoas, o processo de ensino-aprendizagem acontece com lápis e caderno, mas, na verdade, ele se inicia no ventre da própria mãe. O desenvolvimento infantil se dá 24h por dia, em todas as relações que a criança estabelece com o meio e com as pessoas.
Por isso a importância dos ambientes de proteção, carinho e, também, de desafios, já que a superproteção é bem prejudicial. Em suma, uma criança nessa faixa etária, nunca mais em sua vida, terá tamanha quantidade de sinapses — são processamentos neurológicos que envolvem brincar, cantar, ser livre, com autonomia para se expressar.
Felizmente, em comparação ao passado, essa realidade tem mudado muito. Como professora de crianças nas décadas de 80 e 90, vejo que a criança de hoje tem muito mais escuta. E, como toda novidade, esse é um desafio grande para a escola e para os pais.
Voltando aos dados de Careiro, você falou sobre gravidez na adolescência, violência doméstica e pré-natal, tópicos sensíveis e que afetam, também, outras regiões brasileiras com o mesmo perfil cultural e demográfico. Quais os desafios para o avanço desse debate em níveis local e nacional?
É importante você trazer isso, porque os dados sobre violência e abuso não são oficiais — ainda são um tabu no país. É muito difícil falar abertamente sobre sexualidade, prazer, afeto, gravidez, especialmente devido ao crescimento das igrejas evangélicas, que estão ocupando um vazio deixado pelo estado.
Não é que o jovem não tenha formação, mas ele não tem experiência de vida, então a chance de ele errar, sem uma conversa, uma discussão adequada, é grande. E, se eles não conversam sobre sexualidade com os pais, onde farão isso? Na escola, até os diretores têm dificuldade de falar sobre isso — alguns deles, inclusive, são filhos de mães adolescentes.
* Colaborou Rafael Burgos
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