Mensalidades nas federais, uma má ideia em várias dimensões
Vira e mexe, a ideia reaparece, apoiada por liberais e até alguns setores da esquerda. Não seria justo cobrar mensalidades em universidades públicas para quem tem condições de pagar? Na reencarnação mais recente, segundo a Folha de S.Paulo, a ideia teria sido cogitada por "integrantes do Executivo" preocupados com o aperto orçamentário. Na segunda-feira (8), o Ministério da Fazenda veio a público para dizer que a iniciativa "jamais esteve entre as medidas em análise pela pasta".
Cobrar de quem é rico pela oferta de um serviço público parece uma ideia sensata para reduzir desigualdades. Mas no caso do ensino superior, é só aparência: a cobrança fere um princípio constitucional — o artigo 206 garante a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais — e lança as universidades públicas na perigosa lógica privatista.
Quem já deu aulas em instituições públicas e privadas (me incluo nesse grupo) conhece o jogo. Nas particulares, com raras exceções, aluno é cliente, e o "tô pagando" justifica medidas para atrair e reter a clientela: faculdades que mais parecem um shopping center; redesenho de currículo com disciplinas "atraentes" (que em geral só servem ao marketing); aulas com professores midiáticos; investimento em curso de retorno comercial; fechamento de programas importantes para o país, mas não para a saúde financeira das instituições.
Com a gratuidade, universidades públicas estão a salvo dessas e de outras interferências dos perfis socioeconômicos dos estudantes no ambiente acadêmico, o que é bom.
As premissas da cobrança mal param de pé. Em 2022 — lembre-se que o assunto vem e volta, mas não morre nunca —, a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) publicou uma nota técnica sobre o tema:
- A ideia de que a maioria dos estudantes das universidades públicas cursou o ensino médio em escolas privadas não é realidade. Em 1996, a proporção nas universidades federais era de 55% de alunos oriundos de colégios particulares e 45% de públicos. A partir de 2010, a tendência se inverte, chegando a 35% com o médio em privadas e 65% em públicas.
- A razão da transformação é a política de cotas para estudantes de escolas públicas e pretos, pardos e indígenas (PPI). Isso vale mesmo para as instituições que tardaram a adotar as mudanças, como a USP, hoje com 55% de oriundos de instituições públicas.
- O ideal é que os percentuais até aumentem, já que mais de 80% da população estuda o fundamental ou médio em escola pública. Cobrar de estudantes de escolas particulares pode criar dependência dessa fonte de recursos, inibir o processo de abertura para alunos das públicas, ainda em curso, e até mesmo reverter essa tendência virtuosa.
- Não para de pé também no corte financeiro: a renda mensal familiar dos estudantes de federais já é semelhante ao da população brasileira em geral. E cerca de 70% dos alunos tem renda mensal per capita de até 1 salário mínimo e meio. Com esse contingente, em vez de cobrar, ocorre o contrário: eles e elas precisam de auxílio financeiro para não abandonar os estudos.
- A nota técnica desmente, ainda, que o Brasil gaste mais em ensino superior do que na educação básica --R$ 4 de cada R$ 5 investidos na área vão para a educação básica. É um percentual compatível com a média mundial.
Instituições como o Banco Mundial "denunciam" que um estudante de federal custa três vezes mais que um de faculdade privada. O que é o óbvio: a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão — na prática, uma realidade apenas para as públicas — custa caro, e a qualidade da oferta das duas redes é abismal em favor, novamente, das públicas. Se há algum erro, ele se encontra nos estelionatários cursos de mensalidades a partir de R$ 99 dos grandes conglomerados privados.
A cobrança, por fim, traria pouco efeito prático. Estudos que estimam o impacto da cobrança no orçamento das universidades indicam baixo acréscimo. A título de exemplo, José Murari Bovo, docente aposentado da Unesp (Universidade Estadual Paulista), fez as contas para sua instituição: dependendo do modelo aplicado, as mensalidades abarcariam apenas algo entre 6% e 9% da execução orçamentária.
Se a ideia é ser fiscalmente justo, é mais racional tributar os ricos sobre a renda e não sobre os serviços públicos. Quem não tem fica isento. E quem tem muito paga muito nos impostos.
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