Rodrigo Ratier

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Opinião

Musk quer terminar de destruir o Twitter, que é uma ex-grande ideia

Em 1994, Pierre Lévy escreveu "A Inteligência Coletiva", obra considerada uma das mais otimistas análises sobre a era digital que então se iniciava. A tese do filósofo e sociólogo francês era simples: a internet seria um espaço de democratização do acesso à informação e ao conhecimento.

Elon Musk, CEO da SpaceX e dono do X (ex-Twitter)
Elon Musk, CEO da SpaceX e dono do X (ex-Twitter) Imagem: David Swanson/REUTERS

Com toda a humanidade ligada à grande rede, cada pessoa poderia depositar um pouquinho de sua sabedoria — todos, afinal, podemos compartilhar alguma coisa, seja um saber erudito, técnico ou da vida prática. O resultado seria um ambiente virtuoso em que o todo, a inteligência coletiva, seria maior do que a soma das partes.

Um trecho do livro:

A magia dos mundos virtuais está cada dia mais ao alcance do grande público. As 'autoestradas da informação' e a multimídia interativa anunciam uma mutação nos modos de comunicação e de acesso ao saber. Emerge um novo meio de comunicação, de pensamento e de trabalho para as sociedades humanas: o ciberespaço.

Entrevistei Lévy em 2010. Na época, ele era um grande entusiasta do Twitter. Defendia que o microblog, com seus textos de 140, depois 280 caracteres, era o repositório ideal para que as pessoas compartilhassem links interessantes sobre suas áreas de atuação, comentassem construtivamente sobre outras postagens, indicassem obras de artes e produções culturais, tivessem contato direto com as maiores autoridades nos mais variados assuntos em qualquer parte do mundo.

O próprio Lévy se tornou um heavy user da plataforma. Sua conta registra 31,7 mil postagens desde 2008, uma média de quase seis por dia.

O cenário imaginado por Lévy não se concretizou. Talvez em algum momento o Twitter tenha se aproximado desse ideal de local privilegiado para a construção coletiva do conhecimento. Isso de alguma forma se concretizou em iniciativas como a Wikipedia, mas não nas redes sociais. A regra, como ficou claro para qualquer plataforma para a qual se olhe, é a prevalência da incivilidade, da performance e da agressão.

Dois comentários:

Isso não se deve, necessariamente, a uma "natureza má" do ser humano. Em entrevista em 2021, o próprio Lévy brinca dizendo que já éramos maus antes da internet (também esclareceu mais recentemente que seu conceito de inteligência coletiva descreve um processo e não necessariamente atribui a ele uma característica positiva). Complexos seres que somos, podemos lançar ao mundo coisas brilhantes e lamentáveis. A questão é que as redes recompensam o pior em nós. São guiadas por algoritmos que premiam o engajamento, e o que engaja é o ódio, a polêmica, o corte estridente, o lacre.

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Há redes e redes, há lugares ruins e outros ainda piores. Em outro texto, citei o pensamento de Carme Colomina, pesquisadora sênior do Barcelona Centre for International Affairs (CIDOB). Ela defende que as plataformas podem estar próximas de uma bifurcação. De um lado, as mais civilizadas, que aplicam algum modelo funcional de regulação; de outro, as mais tóxicas, territórios sem lei.

Aí é que entra Elon Musk. O Twitter já dava sinais de degradação antes mesmo de ser adquirido pelo bilionário, em 2022. Era a plataforma preferencial para aquilo que o filósofo Byung Chul-Han chama de shitstorms (literalmente, "tempestades de merda", ou cancelamentos, perseguições virtuais).

Dois trechinhos de Chul-Han (o livro é "No Enxame - Perspectivas do Digital", original de 2013):

Os indivíduos digitais se formam ocasionalmente em aglomerados como, por exemplo, em smart mobs [mobilizações instantâneas]. Os seus paradigmas coletivos de movimento são, porém, como dos animais que formam enxames, muito efêmeros e instáveis.

Eles se dissolvem de maneira tão rápida quanto surgiram. Por causa dessa efemeridade, não desenvolvem nenhuma força política. Shitstorms [cancelamentos] igualmente não estão em condições de colocar em questão a relação de poder dominante. Eles se lançam apenas a pessoas individuais, embaraçando-as ou escandalizando-as.

A chegada de Musk e a transformação do Twitter em X acentuaram essa característica. A ausência proposital de regulação, a resposta a questionamentos da imprensa com emojis de cocô, o descumprimento a decisões judiciais, a visibilidade reforçada para autocratas e seus séquitos e a recente decisão de encerrar a operação no Brasil — mantendo convenientemente a plataforma disponível para brasileiros — elevam em vários graus a temperatura da fervura incivil.

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Musk parece buscar uma posição de baluarte da extrema direita. Sob a hipocrisia da "liberdade de expressão", faz do X um brinquedo perigoso em que proliferam xingamentos, ameaças e a exposição do que de mais vil o ser humano pode produzir. Ingenuamente seria o caso de perguntar a quem serve tudo isso. Mas é só puxar pela memória algumas das figuras mais "engajadoras" da plataforma para entendermos.

A conta de Pierre Lévy segue viva e atuante. Segui-lo e pensar na natureza de suas postagens é uma forma de entender o que o Twitter poderia ter sido e não mais será.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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