Estridente, Marçal é embalagem repetida para produto vazio
Uma caixa de sabão em pó é uma embalagem nova para uma descoberta antiga. Ainda no século 1º, o historiador romano Plínio registrou o método de obtenção do sabão. No século 13 começou a fabricação em larga escala, nos anos 1920 veio o sabão esfarelado para lavar roupa e, duas décadas depois, o detergente sólido que hoje chamamos de sabão em pó.
Sabão em pó é hoje uma commodity. Isso significa que a diferença entre uma marca e outra é muito pequena. Os fabricantes que se virem para tentar convencer o consumidor de que seu produto é, sim, diferente.
A embalagem tem papel importante nesse jogo. Cores, tipos de letra, elementos gráficos — o design, em resumo — visam atribuir uma suposta personalidade para coisas que, no fundo, são quase iguais.
No passado, alguém teve uma ideia genial para diferenciar seu sabão em pó: fazer uma embalagem com cores berrantes, letras chamativas, figuras com sensação de movimento, um ar meio bombástico.
Foi novidade até deixar de ser: logo outros tiveram a mesma ideia genial, e a estética da embalagem de sabão em pó também virou uma commodity.
A extrema direita mundial é uma espécie de grande prateleira de sabão em pó. Uma sucessão de pacotes estridentes tentando desesperadamente vender o mesmo velho produto. De vez em quando, aparece uma pretensa novidade. Por aqui, como se sabe, Pablo Marçal é a bola da vez.
Há bem pouca novidade na embalagem do autodenominado ex-coach, ou chief "visionary officer", como atualmente ele prefere ser bajulado. Seis anos atrás, Bolsonaro pode ter provocado choque com sua forma de se comunicar e com as coisas que dizia. Agora que está tudo mapeado, os clones da mesma forma — de Nikolas Ferreira a Cleitinho, de Marçal aos filhos 01 a 04 — soam todos meio bocejantes.
Em sua pesquisa online em grupos públicos de WhatsApp durante o período eleitoral em 2018, a antropóloga Letícia Cesarino apresentou funções metalinguísticas básicas que, segundo a autora, "cobrem praticamente todo o conteúdo coletado" nas redes bolsonaristas.
Dá para generalizar para além de Bolsonaro. São quatro pontos que resumem a comunicação da extrema-direita:
Fronteira amigo-inimigo: mostrar a política como uma disputa não entre adversários, mas entre lados em guerra (Marçal contra "o sistema"). O outro lado só possui defeitos e deve ser eliminado.
Equivalência líder-povo: mostrar o líder como "um de nós", e cada um como um soldado (Marçal tem seus "generais") na batalha do líder.
Mobilização permanente por meio de ameaça e crise: tudo é URGENTE, GRAVÍSSIMO, DENÚNCIA (em letras maiúsculas sempre). A única saída é compartilhar a "verdade" (sempre a do líder) até fazer calo no dedo.
Deslegitimação de instituições para a produção de um canal midiático exclusivo: só o que vem do líder é confiável. Outras fontes — ciência, universidade, jornalismo — não prestam.
Misture isso com os ingredientes ambíguos do neoconservadorismo: família (sempre a tradicional), patriotismo (com todo o preconceito que a ideia embute), Deus (aquele que prega a submissão feminina).
Acrescente pitadas de descontextualização (cortes de debates, por exemplo), formas alternativas de veridição (conferir a ignorantes o status de especialistas), desinformação e apelo a emoção (sobretudo vitimização, medo, raiva e ressentimento).
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Quero receberO resultado é um supermercado inteiro de produtos da extrema direita, com ligeiras modificações.
E qual produto que entregam?
Já não é segredo que as embalagens desse atacarejo estão vazias.
Marçal nem faz questão de esconder: em debate da revista Veja, disse que só responderia em suas redes sociais, uma inovação em termos de fuga de pergunta.
Se recorresse ao seu programa de governo não teria muito refresco. O documento é uma coleção de obviedades, propostas vagas, mistificações neoliberais, anúncio do que já existe e ideias equivocadas. No exemplo da área de educação, pela ordem:
Obviedades: "educação é o principal pilar de uma sociedade próspera"; "educação é o trampolim para a vida"; "esporte é poderosa ferramenta da transformação social e emocional";
Propostas vagas: "não deixar ninguém para trás"; "investiremos em conteúdos, equipamentos e acesso à internet de qualidade"; "faremos parcerias"
Mistificações neoliberais: "não falta recurso, falta gestão"; "professores receberão prêmio por resultado".
Anúncio do que já existe: criação de indicadores de aprendizagem; mapeamento de "carências" das escolas; métricas e avaliações diagnósticas regulares.
Ideias impossíveis: "expandir a iniciativa dos vouchers" (em São Paulo, não existe o modelo de voucher, tíquetes para matricular crianças na escola que escolherem); "formação profissional e oportunidade de emprego" (o trabalho infantil a menores de 14 anos é proibido no Brasil. Só 0,3% da rede municipal é de ensino médio).
Que apesar de tudo isso o produto tenha saída não surpreende. No supermercado das redes sociais, os algoritmos recompensam com visibilidade nas gôndolas centrais figuras como a de Marçal.
Até que surja a próxima embalagem estridente, com o mesmo produto vazio.
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