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Rogério Gentile

REPORTAGEM

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Torturado aos 17 pela ditadura, idoso em situação de rua será indenizado

Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 -  Kaoru/CPDoc
Ditadura Militar no Brasil foi de 1964 a 1985 Imagem: Kaoru/CPDoc

Colunista do UOL

27/03/2023 10h43

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A Justiça condenou o Estado de São Paulo a indenizar um idoso em situação de rua que provou ter sido torturado pela ditadura militar brasileira junto a outras dezenas de garotos na chamada Operação Camanducaia.

Elizeu Messias, hoje com 66 anos, era um dos 93 jovens que, em outubro de 1974, foram recolhidos de várias delegacias e colocados em um ônibus durante a madrugada.

Os garotos, de 10 a 17 anos, foram obrigados a descer, pelados e sob tapas, em um barranco na beira da rodovia Fernão Dias, próximo da cidade de Camanducaia (MG). Os policiais estavam armados com revólveres e metralhadoras e dispararam para o alto a fim de dispersá-los.

Messias disse à Justiça que morava em uma instituição social quando foi repentinamente levado ao Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) sem ter sido informado sobre o motivo. Lá ficou preso vários dias, tendo sido agredido e passado fome.

Na noite de 18 de outubro, de acordo com o relato que fez à Justiça por meio da Defensoria Pública, foi levado para o ônibus com os outros garotos.

"As cortinas estavam fechadas. Depois de uma longa viagem, sem qualquer alimentação, o ônibus parou no acostamento. Conforme os meninos desciam, eram obrigados a se despir completamente. Logo em seguida, começaram a receber pauladas, alguns rolaram pela ribanceira, outros fugiram", afirmou à Justiça a defensora pública Fernanda Dutra Pinchiaro, uma das representantes de Messias no processo de reparação aberto contra o Estado.

O idoso disse que, ao descer, recebeu uma paulada na cabeça e desmaiou.

A Operação Camanducaia foi revelada pela Folha de S.Paulo dias depois, pelo jornalista José Louzeiro, que havia recebido uma ligação de uma leitora dizendo que a polícia da cidade havia encontrado cerca de 50 garotos, nus e machucados. O texto foi censurado, e apenas uma nota de poucas linhas foi publicada.

O episódio inspirou o jornalista a escrever o livro "Infância dos Mortos", que, posteriormente, serviu como base para o filme "Pixote", de Hector Babenco, um clássico do cinema nacional.

Uma investigação foi realizada à época para apurar as responsabilidades pela Operação Camanducaia, mas o caso foi arquivado e não houve punição.

Ao recorrer à Justiça, em um processo aberto 45 anos depois, em 2019, Messias disse que, depois da Operação Camanducaia, nunca mais teve notícias das irmãs, e que até hoje sente-se inseguro em todos os lugares.

Um relatório anexado ao processo afirma que o idoso "padece de angústia crônica, ansiedade, depressão, insônia persistente, pesadelos, sentimentos de culpabilidade e de vergonha, isolamento e adoecimento recorrente".

A coluna não conseguiu localizar o idoso. De acordo com o processo, ele não tem lugar certo para morar. Está em situação de rua e, a cada dia, fica em um albergue temporário, a depender da disponibilidade de vagas.

O governo paulista se defendeu no processo afirmando não haver nos autos prova de que Messias tenha sido vítima da Operação Camanducaia.

"Os relatos, embora possuam alguma carga de verossimilhança, não se configuram como prova suficiente de que foi vítima das narradas violações a direitos humanos", afirmou à Justiça. "Além de não comprovar a participação na Operação Camanducaia, de cuja gravidade não se olvida, o autor também não trouxe elementos suficientes para demonstrar que tenha sofrido maus tratos ou apreensões ilegais."

O juiz Josué Vilela Pimentel não concordou com a argumentação e condenou o Estado a pagar uma indenização de R$ 65 mil ao idoso. Messias havia pedido 600 salários-mínimos, cerca de R$ 781 mil.

"As provas efetivamente dão conta de que o autor foi uma das vítimas do episódio", afirmou o juiz na sentença proferida no dia 22 de março. "Tanto é assim que ele figurou, ainda naquela época, em queixa-crime que pretendia apurar as responsabilidades do episódio, queixa esta rapidamente arquivada por motivos óbvios. À época, seria praticamente impossível responsabilizar judicialmente os agentes da ditadura."

Ainda cabe recurso à decisão.