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Ronilso Pacheco

No BRICS, Ernesto Araújo ataca OMS, sem qualquer menção aos 125 mil mortos

Ernesto Araújo, crítico do "multilateralismo" da OMS, enquanto fortalece o multilateralismo numa aliança internacional de supremacia cristã - MARCELO CAMARGO/AG. BRASIL
Ernesto Araújo, crítico do "multilateralismo" da OMS, enquanto fortalece o multilateralismo numa aliança internacional de supremacia cristã Imagem: MARCELO CAMARGO/AG. BRASIL

06/09/2020 04h00

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Nesta última sexta-feira, 04 de setembro, aconteceu a Reunião de Ministros das Relações Exteriores do bloco de países emergentes formado por Brasil, Russia, Índia, China e África do Sul, chamado BRICS, na qual o Brasil foi representado pelo ministro Ernesto Araújo.

Inevitavelmente, a pandemia do novo coronavirus era uma das questões que estavam no centro das discussões. No seu discurso, Ernesto Araújo se pôs a atacar diretamente a Organização Mundial de Saúde, enquanto enaltecia as respostas dadas pelo governo brasileiro à pandemia. O ministro não especificou quais foram as respostas dadas, nem sequer mencionou os 125 mil mortos até agora.

Em sua crítica à OMS, o ministro afirmou: "O Brasil considera que a OMS não tem cumprido sua tarefa de ser ágil e transparente em promover livre fluxo de informações para o bem comum". Aqui, Araújo parece estar sendo movido mais pelo ressentimento do que pela coerência.

A própria OMS, através de seu diretor, Michael Ryan, em junho, criticou o Brasil pela má gestão das informações. Na ocasião, o Ministério da Saúde divulgou dados desencontrados, e, ao se explicar sobre o assunto, afirmou que os números de Rondônia e Ceará estavam errados, o que teria causado a confusão.

No entanto, desde a saída de Henrique Mandetta, o Ministério da Saúde passou a dificultar a divulgação de dados à população, o que levou a construção de um consórcio de veículos de imprensa, para fazerem sua propria coleta de dados, junto às secretarias de Saúde estaduais, do número de infectados e mortos.

A entrada do general interino que se tornou fixo, Eduardo Pazuello, foi marcado por um apagão na transparência dos dados, à ponto de ser necessária a intervenção do STF, para que a população continuasse devidamente atualizada do avanço da pandemia e das vidas perdidas.

Ernesto Araújo acusou o "multilateralismo" da OMS de querer ser detentor da "ciência, do conhecimento e da retidão". O ministro se considera um crítico do "globalismo" e cético quanto a organizações internacionais. No entanto, celebra a construção de uma aliança internacional de defesa do cristianismo com Estados Unidos, Polônia e Hungria. Parece que há um multilateralismo de conveniência.

Teoricamente, a chamada "Aliança Internacional para Liberdade Religiosa" se concentra na liberdade de todas as religiões. Na prática, porém, um twitter de 27 de setembro de 2019, do ministro parece revelar a verdadeira missão da aliança: "Brasil está colocando o combate à perseguição aos cristãos na agenda internacional. A desvalorização do cristianismo pela cultura politicamente correta é grande parte do problema".

Em junho de 2019, em entrevista ao Financial Times, Araújo afirmou que "os valores cristãos devem estar de volta ao centro da visão de mundo". A narrativa conservadora cristã de "volta ao centro", a defesa de uma cosmovisão cristã (conservadora e fundamentalista) e a luta contra a "perseguição religiosa" aos cristãos, são partes fundamentais de uma aliança diplomática conservadora internacional.

O núcleo religioso, evangélico e católico, fundamentalista do governo e seus apoiadores mantiveram a compreensão da pandemia como um inimigo moral, politico e cultural, vinculado diretamente a expressões progressistas ou de esquerda, que incluiria inclusive uma suposta conspiração da ciência e cientistas, na qual estaria também a OMS.

Esta frieza e indiferença com relação às vidas perdidas, o uso ideológico da pandemia para desacreditar medidas de isolamento social, tais como uso de mascaras e fechamento de estabelecimentos, inclusive igrejas, é estratégia proposital, forçada e reforçada para contrapor fé e ciência, e um desprezo e desrespeito por discursos que não endossassem uma visão conservadora cristã anticomunista e anti-China.

Não é por acaso que nas primeiras semanas da chegada do coronavirus ao Brasil, o ministro chegou a chamar publicamente o virus de "comunavírus", associando-o diretamente à China, seguindo o exemplo do president Donald Trump, sua grande inspiração, que usa a expressão "vírus chinês". Um diplomata que age publicamente de forma xenofóbica, baseado em princípios ideológicos.

No BRICS, Araújo proferiu discurso enganoso, ao acusar a OMS de ter falhado ao insistir no início da pandemia que a prioridade era a saúde. Já em abril, os diretores da OMS e do Fundo Monetário Internacional publicaram artigo conjunto, em que afirmavam que discutir "entre vidas e empregos era falso dilema", e que ambos deveriam ser pensados juntos.

Temos, portanto, um ministro de Estado que rivaliza a diplomacia do país com o mais importante e respeitado órgão internacional de saúde, sem ter nada que nos faça crer que a resposta brasileira é realmente melhor, segura e transparente. Uma diplomacia de fé emburrecedora e fundamentalista, que compromete o Brasil em todas áreas.