Valmir Salaro

Valmir Salaro

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Reportagem

Como funciona o golpe do bilhete premiado e por que ele resiste no Brasil

Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública deste ano revelam que, a cada 16 segundos, um brasileiro cai em um golpe digital. Os golpes são aplicados por estelionatários usando as redes e a internet, principalmente o WhatsApp.

Eles estão cada vez mais "criativos" na busca de dinheiro fácil, agindo no anonimato e sem se arriscarem a ser presos. Esses criminosos vão ligando, inventando histórias.

As pessoas acreditam e, quando se dão conta de que perderam dinheiro, por vergonha, nem procuram a polícia. E o prejuízo é só das vítimas.

Nesses casos, as pessoas não sabem por quem foram enganadas. Mas, entre os estelionatários e golpistas, há ainda um tipo de criminoso que mostra a cara.

Com uma boa conversa — sempre se passando por ingênuo —, consegue aplicar o velho golpe do falso bilhete premiado.

Dinâmica do golpe

Uma senhora aposentada do bairro da Lapa, na zona oeste de São Paulo, caiu nesse golpe em junho deste ano. Ela não quer se identificar, com medo de ficar marcada como uma pessoa gananciosa ou uma vítima simplória.

"Ele se dizia analfabeto, vindo de um sítio do interior, e procurava uma loja de roupas usadas para resgatar uma quantia em dinheiro", conta a senhora, que no dia do golpe voltava a pé de uma aula de pilates.

Enquanto os dois conversavam, um segundo homem se aproxima. Ele se apresenta como Ricardo, está bem-vestido e apressado.

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Começa a encenação: o desconhecido, que demonstrava ser rico, aparentemente se recusa a parar para ouvir o "homem simples do interior", que dizia se chamar José.

A aposentada e o tal Ricardo suspeitam que José cairia em um golpe, caso fosse resgatar o dinheiro na loja de roupas. Ele contou aos dois que possuía um bilhete de loteria premiado no valor de R$ 13 milhões.

"O bilhete era real, com números que de fato saíram na loteria. Ricardo, na minha frente, liga para a Caixa Econômica e confirma a história de José. No viva-voz, o atendente da Caixa garante que era um bilhete de R$ 13 milhões", relata a aposentada, casada e mãe de dois filhos.

Segundo ela, José se emociona, chora muito, se joga no chão e agradece à aposentada e a Ricardo, dizendo que os dois impediram que ele "caísse num golpe" caso trocasse o bilhete por um valor inferior ao prêmio.

A aposentada se oferece para acompanhar o "ganhador" até uma lotérica e resgatar o "prêmio milionário". Ricardo opina, dizendo que a quantia era muito grande, e que eles deveriam ir a uma agência da Caixa Econômica na avenida Paulista.

José disse que só iria na companhia da aposentada, já que se sentia "seguro na presença dela". "José prometeu dar 10% do valor do prêmio para mim e para o Ricardo pela ajuda que demos a ele."

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Mas o ingênuo morador do sítio mostra que, em relação a dinheiro, ele não era tão simplório quanto aparentava. José pede uma garantia da aposentada e de Ricardo para provar que são pessoas de confiança.

Ricardo leva José e a aposentada até onde seria sua suposta casa, onde dizia ter dólares para oferecer como prova para José.

"O Ricardo desce e volta com uma mala cheia de dólares e agora seria a minha vez de dar uma prova de confiança. Eu disse que só tinha dinheiro no banco. Ricardo me disse para mandar o dinheiro para uma casa de câmbio, onde ele sempre fazia transações."

Eles vão a um dos bancos onde a aposentada tinha conta e dizem a ela para afirmar para o gerente que precisa do dinheiro para fazer uma transferência.

Diante do alto valor solicitado, a vítima volta para o carro, dizendo que não conseguiu. Eles seguem para outra agência onde ela também tinha conta-corrente.

Policiais do Rio Grande do Sul prendem suspeito na Operação Ilussio, contra golpe do bilhete premiado
Policiais do Rio Grande do Sul prendem suspeito na Operação Ilussio, contra golpe do bilhete premiado Imagem: Divulgação/PCRS
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Prejuízo de R$ 300 mil

A aposentada conta: "Fiz uma transferência de todo o dinheiro que eu tinha, mandei R$ 150 mil para uma conta na Bahia que eu achava que era uma casa de câmbio. Só descobri depois que era a conta de um 'laranja'".

Mas o prejuízo dela foi ainda maior: como já era tarde, a aposentada foi embora a pé para casa, e a dupla de estelionatários seguiu de carro. Porém, continuaram se falando por mensagem de WhatsApp.

No dia seguinte, a mulher recebeu uma ordem deles para fazer mais uma transferência, dessa vez do banco (Santander), que se negou a repassar o dinheiro para o outro banco (Banco do Brasil) que tinha autorizado a primeira transferência.

Ela vai à agência e manda mais R$ 150 mil para outra "casa de câmbio" em Minas Gerais, que mais tarde ela descobriria ser a conta de um laranja.

"Acreditei que eles iriam até a minha casa com os dólares que comprei com as duas transferências que fiz para as 'casas de câmbio'. Depois dessa prova, pensei que receberíamos um pequeno percentual do prêmio do José."

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Eles nunca mais apareceram e a aposentada tomou um golpe de R$ 300 mil — economia de toda sua vida.

Ela foi aos bancos para explicar o golpe, mas não teve sucesso.

Perdeu tudo e só restou a ela procurar a delegacia do bairro e registrar um boletim de ocorrência pelo crime de estelionato.

Todos os pedidos de contestação das transferências aos bancos foram indeferidos.

Velho golpe ainda faz vítimas

A história da aposentada prova que, quando bem planejado, o velho golpe do bilhete premiado ainda faz muitas vítimas.

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A polícia sempre alerta para os riscos de ser enganado por uma boa conversa, um falso prêmio da loteria ou ligações e mensagens oferecendo vantagens boas demais para serem reais.

"Investiguei um caso em que uma senhora perdeu R$ 1 milhão no golpe do bilhete premiado. Para esse tipo de golpe os criminosos procuram perfis de vítimas parecidos com os dessa aposentada do bairro da Lapa que caminham sozinhas pelas ruas", diz o delegado Eduardo Miraldi, que investiga fraudes financeiras do Deic (Departamentos de Investigações Criminais), que recebe centenas de denúncias de golpes por dia.

"Elas são um alvo fácil. Se emocionam. Querem ajudar e se sentem compensadas quando os estelionatários oferecem um prêmio de agradecimento", afirma o delegado.

Ao serem abordadas por estranhos com propostas "irrecusáveis", as pessoas precisam saber que não existe mágica.

"É tudo falso. A pessoa não pode ser gananciosa nessa hora. Tem que desconfiar. Em 2024, ninguém vai dizer que ganhou 10, 20 milhões de reais na loteria e que é muito pobre e do interior, a ponto de aceitar vender esse prêmio por 300 mil reais. O ganho fácil não existe. Tem que desconfiar sempre", alerta Miraldi.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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