Wálter Maierovitch

Wálter Maierovitch

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Por que banalização do genocídio é arma no conflito entre Israel e Hamas

Até no balcão de venda de café expresso do bar da esquina, o genocídio entra nas conversas dos indignados.

Essas conversas irão continuar, pois o conflito entre Hamas e Israel prosseguirá por bom tempo, com absurdo número de vítimas civis - ou melhor, vítimas inocentes, não combatentes.

Fatos novos nunca faltam. Por exemplo, o campo de refugiados de Jabalia acaba de receber o segundo bombardeio e, em razão disso, o alto comissário para os direitos humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), o austríaco Volker Turk, alertou para ocorrência de crime de guerra.

Outro exemplo: para emocionar e levar às lágrimas, imagens têm exibido o desespero dos 300 estrangeiros e dos 76 palestinos feridos que conseguiram sair da Faixa de Gaza, graças à abertura autorizada pelo governo do Egito.

Uma das mulheres da travessia de saída do inferno de Gaza disse: "Não estou alegre, mas internamente destruída. O meu pensamento permanece com os que aguardam para sair da barbárie".

Genocídio, crime de guerra, terrorismo ou crime contra a humanidade?

A escolha entre essas definições tem sido livre, de acordo com os graus de reprovação e de "ira santa" de cada pessoa.

Ninguém, no entanto, faz o enquadramento correto dos crimes consumados com apoio nos tipos descritos como crimes pelo Direito Internacional, que é o Direito das Gentes.

Aí, entra a banalização, o vale tudo, o "achismo". Pior, a tragédia como propaganda pelas partes em luta.

Continua após a publicidade

Genocídio como arma de propaganda

Em geral, em um conflito ou em uma guerra, fala-se o tempo todo em crime de genocídio. Usa-se a força do hediondo, do abjeto, do bárbaro e do desumano. Em outras palavras, chama mais a atenção usar genocídio ao invés do correto tipo criminal internacional.

Para fins propagandísticos, a expressão crime de genocídio é muito mais impactante do que crimes contra a humanidade, gênero do qual o genocídio é uma variante.

No caso do conflito em curso, o Hamas atribui genocídio a Israel e o Estado hebreu o mesmo tipo de crime ao Hamas - tudo como propaganda, fora do campo técnico e jurídico.

Quando a propaganda de guerra teve início nas redes sociais, não houve respeito às definições dadas pelo Direito Internacional.

No campo ideológico, a direita e a esquerda radicais têm abusado do uso de conceitos do Direito do Internacional. Deram a ele forma elástica e subjetiva de interpretação.

Continua após a publicidade

Existe até quem enxergue, sem ler o Direito Internacional e como escrevi em coluna anterior, "apartheid" em Gaza, quando apartheid ocorre na Cisjordânia, por tratamento legal diverso a dois povos, duas populações, em um mesmo território.

Lula e Erdogan puxam fila

Até chefes de Estados e de governos acusam de crime de genocídio ora o Hamas, ora Israel.

Lula e e o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, dentre outros, sentenciaram a consumação de genocídios.

Ambos julgaram, sem dizer a lei na qual basearam esse julgamento. Certamente, não foi a Convenção da Organização das Nações Unidas de 1948, em vigor desde 1952, que define o significado de genocídio.

O conflito em Gaza, e não há dúvida a respeito disso, está causando justa indignação mundo afora, tamanha a matança de civis inocentes -em especial, crianças, mulheres e velhos. Ontem (1º), estimava-se que já havia 19 mil palestinos mortos e 16 soldados israelenses caídos em combate.

Continua após a publicidade

Não mencionei crianças, velhos e mulheres por acaso - pelo Direito Internacional e segundo a ONU, essas pessoas não conseguem, ao contrário dos homens adultos, adaptarem-se às condições geradas pelas guerras. Ou seja, dificilmente sobrevivem.

Crimes praticados em Gaza

Tecnicamente e no conflito armado na Faixa de Gaza, não dá para tipificar autorias de crime de genocídio, seja de parte do Hamas, seja de Israel.

Os crimes são bem outros e, também, muito graves, conforme o Direito Internacional.

Estão visíveis, com prova provada, os crimes contra a humanidade perpetrados pelo Hamas e por Israel.

Quanto aos denominados crimes de guerra, já fica mais difícil, pois, tecnicamente, não há guerra, mas conflito entre um estado e um grupo terrorista. Só quando estados nacionais entram em guerra, caso de Rússia e Ucrânia, pode-se tecnicamente falar em crimes de guerra.

Continua após a publicidade

Nenhuma dúvida, entretanto, quanto ao terrorismo e ao método terrorista empregados pelo Hamas no dia 7 de outubro do mês passado.

Como disse ontem o líder do Hamas, o objetivo é eliminar Israel e isso irá prosseguir. Matar indiscriminadamente quem se encontra pela frente e, no caso específico, civis, tipifica o terrorismo. As mortes, alvo imediato da violência, tinham por meta o alvo principal, ou seja, sumir com Israel do mapa.

Mais ainda, trata-se, sempre conforme do Direito Internacional, de terrorismo confessado pelo líder do Hamas.

Não se trata de resistência, como alega a esquerda radical, pois a resistência não autoriza a eliminação de civis inocentes, escolhidos como alvos. Isso aconteceu no 7 de outubro, quando o território israelense foi invadido.

Houve, sim, no dia 7 de outubro passado terrorismo por parte do Hamas, com civis inocentes como alvos. De imediato, verificou-se a defesa militar de Israel.

Só que Israel violou, pelo exagero e pela desproporcionalidade, sem contar o risco à população civil, o Direito Internacional.

Continua após a publicidade

Da legítima defesa, Israel passou ao massacre indiscriminado, com mortes de inocentes.

Afinal, o que é genocídio?

O judeu, humanista e jurista polonês Rafael Lemkin usou o termo, a palavra certa e justa, para definir o holocausto dos armênios.

Como se sabe, cerca de 1,5 milhão de armênios foram massacrados pelos turcos-otomanos, durante e logo após a Primeira Guerra Mundial.

Lemkin, profundo conhecedor do grego, encontrou a palavra "yecov" (ghenos, no grego antigo), no sentido de compreender etnias, raças, famílias e grupos de minorias. Então, acresceu o sufixo latino "cídio", que significa assassinato.

Pela junção das palavras grega e latina, Lemkin criou o que era um neologismo na época: genocídio.

Continua após a publicidade

O termo genocídio foi mencionado e explicitado na obra de Lemkin intitulada "Axis Rule in Occupied Europe", publicada em 1944.

Com a Shoá, o termo genocídio ficou mundialmente conhecido, sendo usado nos julgamentos de nazistas nos tribunais de Nuremberg e de Toquio, após a Segunda Guerra Mundial.

Lemkin, dez vezes indicado ao Nobel da Paz, contribuiu com as Nações Unidas e apresentou, na Convenção de 1948 da ONU, uma definição para o crime de genocídio.

Na referida convenção, foi aprovada a tipificação do crime de genocídio, a partir da definição de Lemkin. Essa convenção passou a vigorar em 1952.

Lenkin, por ocasião da sessão da ONU, destacou, em discurso emocionado:

" Ninguém nasce odiando o outro pela cor da sua pele, por sua origem ou religião. Se as pessoas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar".

Continua após a publicidade

Pelo tipo criminal internacional, em vigor desde 1952, o genocídio representa conduta intencional e sistemática contra a população civil e com plena ciência dos atos. São ações sistemáticas dirigidas à destruição de um grupo nacional, grupo étnico, religioso ou social.

Já o crime contra a humanidade, consumados em Israel e Gaza, tipifica-se por ato ou conduta desumana contra a população civil, povo ou parte dele.

No estatuto constitutivo do Hamas consta como meta a eliminação do Estado de Israel. Fala-se em Israel e não no povo hebreu, judeu. Isso foi repetido pelo líder do Hamas na coletiva de ontem.

O Hamas cometeu terrorismo e crimes contra a humanidade. No ataque de 7 de outubro, a meta foi a eliminação de membros da população civil, indiscriminadamente. Matava-se quem aparecia na frente, em fuga ou na tentativa de se esconder.

A motivação dada pelo Hamas para o ataque foi a provocação, devido ao fato de judeus ortodoxos circularem pelo Monte do Templo, ao redor da mesquita Al Aqsa, templo sagrado e de onde Maomé subiu aos céus, em um cavalo, como acreditam os islâmicos.

Ao contrário do que pensa o premiê israelense Benjamin Netanyahu, não se verificou genocídio por parte do Hamas, pois não estava em jogo a eliminação de um povo ou parte dele.

Continua após a publicidade

Quanto ao Estado nacional de Israel, o objetivo da reação decorreu do ataque terrorista sofrido. Não estava em jogo a eliminação do povo palestino. Grande parte dos palestinos, não atacada com o fim de eliminação, vive na Cisjordânia ocupada por Israel

Genocídios consumados

As Nações Unidas criaram dois tribunais internacionais em razão de crimes de genocídio.

Um deles julgou e condenou como genocídio os assassinatos ocorridos em Ruanda (África). Os membros da etnia hutu tentaram aniquilar a minoria tutsi.

O segundo tribunal internacional processou e julgou genocídios na ex-Iugoslávia, anos 1990. Mais especificamente, o massacre cometido por sérvios do então presidente Slobodan Milosevic. As vítimas foram os bósnios-muçulmanos de Srebrenica.: cerca de 8.370 deles foram assassinados.

Milosovic, que morreu no cárcere do TPI (Tribunal Penal Internacional) antes de ser julgado, promoveu a chamada limpeza étnica (genocídio), com o objetivo de recriar a imaginada Grande Sérvia.

Continua após a publicidade

Nos anos 1930, tivemos o genocídio, não julgado, com o nome de Holodomor - uma eliminação, por meio da fome, de ucranianos pela União Soviética, sob o governo de Stalin.

Na recente invasão da Ucrânia pelos russos, o presidente Vladimir Putin invocou, para legitimar a violação à soberania ucraniana, o cometimento de crime de genocídio contra cidadãos de fala russa da região de Donbass.

Foi pura invenção de Putin, com fim propagandístico. O presidente russo teve a prisão preventiva decretada pelo TPI e, no conflito do Hamas contra Israel, apresenta-se como paladino da defesa dos direitos humanos, sem corar as faces.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes