Falta de planejamento, facções e crise: como a segurança do Rio chegou ao ponto da intervenção
Publicado em edição extra do Diário Oficial da União na sexta-feira (16), o decreto assinado pelo presidente Michel Temer (MDB) que determina uma intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro já começa a valer.
Com a intervenção, o general Walter Souza Braga Netto, líder do CML (Comando Militar do Leste) substitui o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (MDB), na área da segurança. O comando, até o fim do ano, das polícias, bombeiros e área de inteligência do Estado agora é de Braga Netto.
Em discurso, Temer disse que a medida foi adotada porque "assim exigiram as circunstâncias". O presidente justificou o decreto citando a presença do crime organizado no Estado. Entretanto, o aumento da criminalidade vem sendo agravado desde que o governo estadual entrou em crise econômica. Veja a seguir fatores que culminaram na intervenção na segurança no RJ:
Crise econômica no RJ
Desde junho de 2016, o Rio vive sob estado de calamidade financeira, que atrasou salários de servidores e o RAS (Regime Adicional de Serviço), uma espécie de hora extra paga a policiais. Além dos servidores, o governo não conseguiu honrar compromissos com fornecedores. Em maio passado, o decreto de calamidade foi renovado.
Com a medida, o Rio teve base legal para descumprir artigos da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) sem sofrer sanções. Pelo decreto, também foram permitidas medidas excepcionais sem autorização do Legislativo, como realocação de verbas e cortes de serviços para priorização de outras áreas, incluindo a segurança pública. O efetivo das polícias foi reduzido, assim como benefícios dos servidores da área.
Para 2018, está previsto déficit orçamentário de R$ 10 bilhões na receita do Estado --as despesas devem ser da ordem de R$ 73,1 bilhões, sendo que o maior gasto será com salários (R$ 23,6 bilhões). A área que mais receberá recursos será a da segurança, com R$ 11,5 bilhões, seguida pela educação, com R$ 7,7 bilhões, e pela saúde, com R$ 6,6 bilhões.
Após pôr o cargo à disposição, o secretário de Segurança, Roberto Sá, afirmou que a crise fluminense tem relação direta com a falta de recursos e que sua gestão se esforçou para evitar um "mal maior".
"Fui o criador do RAS [Regime Adicional de Serviço, uma espécie de hora extra], do sistema de metas, da RISP [Regiões Integradas de Segurança Pública] e um dos precursores da UPP [Unidade de Polícia Pacificadora]. Só que acabou o dinheiro e a gente continuou até porque o Rio merecia. Essa necessidade de, no momento mais crítico da história do país e do Rio de Janeiro financeiramente, evitar o mal maior, o que foi evitado: greves foram evitadas, caos maiores foram evitados, para agora poder fazer uma transição e passar para um momento de melhora", afirmou em entrevista ao RJTV, da "TV Globo".
Facções e ocupação territorial
De acordo com o presidente Michel Temer, "o crime organizado é uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade de nosso povo". O governador do Estado, Luiz Fernando Pezão (MDB), admitiu ontem que as polícias estaduais não têm a capacidade de combater as facções presentes no RJ.
"Se nós não contarmos com esse auxílio das Forças Armadas, da Marinha, da Aeronáutica e do Exército, da Polícia Federal, e principalmente da PRF (Polícia Rodoviária Federal) [...], é impossível se combater a entrada de armas, munições e drogas", declarou Pezão.
Ex-secretário nacional de Segurança no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o coronel da reserva de SP José Vicente da Silva Filho considera que o alto grau de armamento do tráfico no Rio aliado ao controle territorial --há favelas com as entradas fechadas por barricadas e reguladas por traficantes com fuzis-- justificam a medida do governo federal.
"Você tem facções com armas de guerra que eu só vi na Colômbia na época em que as Farc estavam atuando. Um comandante da PM, em entrevista à imprensa, estimou que havia pelo menos 3.000 fuzis de guerra nas mãos de criminosos no Rio, que é o efetivo de uma brigada de Exército. É muita arma, e ela está tão banalizada que começa a aparecer em pequenos assaltos de rua. Essa é uma característica do potencial ofensivo dos criminosos do Rio de Janeiro, isso não tem no Ceará nem em São Paulo", afirmou.
A principal facção criminosa do Estado, o CV (Comando Vermelho), está se expandindo, segundo especialistas, que apontam uma ruptura dessa organização criminosa com o PCC (Primeiro Comando da Capital), de São Paulo, há cerca de dois anos. A relação interrompida entre as facções fez com que os Estados de SP e Rio trocassem presos das organizações criminosas, com receio de que pudesse haver "assassinatos violentos", caso integrantes de grupos rivais estivessem juntos em um presídio.
Em meio a essa briga entre as maiores facções do país, o CV tem se aliado a outras organizações criminosas, principalmente do Norte e Nordeste.
Um promotor do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) de Presidente Venceslau, onde está presa a cúpula do PCC, afirmou ao UOL que a disputa tem regras claras. "O que importa às facções é o mercado financeiro e o lucro que existe a partir do tráfico de drogas. Para manter essa empresa que vende drogas, eles precisam praticar outros crimes e importar armas. Mas o cerne da questão é este", afirmou.
O promotor, que pede para não ser identificado, afirma que, no Rio, o CV e outras facções têm uma disputa direta e diária, com chefes do tráfico planejando como tomar a posse de outros pontos de venda de drogas e como combater a milícia.
"O CV já foi mais forte do que é hoje, mas se mantém à frente das demais facções no Rio. Caso o Exército tenha o real interesse em combatê-lo, vai precisar de muita inteligência, já que presença física e trocas de tiros têm se mostrado, nos últimos anos, como uma peneira para tapar o sol", analisou.
A disputa pela Rocinha
A favela da Rocinha, na zona sul carioca, é um ponto estratégico para o tráfico de drogas. Turistas costumam querer conhecer o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar e as três principais praias da região: Copacabana, Leblon e Ipanema. Com alto fluxo de moradores da classe média, a zona sul, e por consequência a maior favela da região, é disputada por traficantes.
Desde setembro do ano passado, a Rocinha teve intensificada a violência. Isso porque houve uma disputa territorial entre os traficantes Antônio Bonfim Lopes, o Nem, mesmo recluso em presídio federal, e Rogério 157, capturado em dezembro após quase três meses se escondendo em favelas da cidade. A partir dessa disputa, a crise da segurança se espalhou para outras favelas do Rio.
No fim de setembro, cerca de 950 homens do Exército foram enviados para cercar a Rocinha. Depois de uma semana, o Exército deixou o local. Segundo o ministro da Defesa, Raul Jungmann, a Rocinha estava "estabilizada".
Após a prisão de 157, o crime organizado na favela não demorou nem 24 horas para nomear um novo chefe do tráfico. José Carlos de Souza Silva, conhecido como Gênio, assumiu o posto provisoriamente. Assim como 157, ele pertencia à ADA (Amigo dos Amigos), mas migrou para o CV após o racha entre 157 e Nem.
Segundo a polícia, Gênio tinha a confiança de 157 e a rápida indicação demonstra a intenção de não permitir que o grupo fique sem comando, assim como tentar evitar que a ADA retome o território.
Quase dois meses após a prisão de 157, a favela voltou a registrar tiroteios entre criminosos e PMs, o que deixou um rastro de violência no entorno da comunidade e em suas ruas, becos e vielas.
Maior taxa de mortes violentas em 8 anos
O Rio fechou 2017 com a maior taxa de mortes violentas desde 2009, segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública), órgão do governo fluminense. Foram 6.731 casos no ano passado, o que representa taxa de 40 mortes violentas por 100 mil habitantes. Em 2009, o mesmo índice foi de 44,9. O levantamento também aponta o maior índice de mortes pela polícia em nove anos.
Entre 2010 e 2016, a estatística de mortes violentas no RJ esteve abaixo da taxa de 40 por 100 mil habitantes. O período reflete a ascensão e o declínio do projeto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), criado em 2008 na gestão do ex-governador Sérgio Cabral (PMDB) --hoje e preso e condenado por corrupção e outros crimes no âmbito da Operação Lava Jato.
O indicador de mortes violentas é composto por quatro tipos de registro criminal: homicídios dolosos (com intenção), homicídios praticados por policiais, latrocínios (roubo seguido de morte) e lesão corporal seguida de morte.
Ainda de acordo com os dados do ISP, 2017 também foi o ano em que se verificou a maior taxa de homicídios decorrentes de intervenção policial nos últimos nove anos. O índice ficou em 6,7 por 100 mil habitantes --em 2008, era de 7,3. Foram, no total, 1.124 mortos pela polícia no ano passado.
Em contraponto, em 2017, 134 PMs foram mortos a tiros no Estado, em serviço ou durante a folga. Em 2016, foram 133 policiais militares mortos nas mesmas condições.
Além de policiais, até crianças são vítimas constantes da violência no Rio. Desde o começo de 2017, ao menos 12 crianças morreram vítimas de balas perdidas e disparos de armas de fogo na região metropolitana; em 2018, já foram dois casos.
Procurada, a Seseg (Secretaria de Segurança Pública) do Rio ainda não se manifestou sobre o assunto.
Tiroteios fecham vias e escolas
Entre 31 de janeiro e 1º de fevereiro, a linha Amarela, uma das vias expressas mais importantes do Rio, acabou fechada para carros, nos dois sentidos da pista, em razão de tiroteios. Os motoristas ficaram retidos nas imediações da Cidade de Deus, favela da zona oeste que é margeada pela via, e alguns chegaram a sentar no chão e se protegeram atrás de carros até que o tráfego fosse liberado.
No dia 31, uma operação da PM deixou ao menos três suspeitos mortos e levou ao bloqueio da via. Protestos com barricadas de fogo deixaram motoristas em pânico.
No dia 6 de fevereiro, durante troca de tiros entre criminosos e policiais, Jeremias Moraes da Silva, 13, foi atingido por uma bala perdida no peito e não resistiu aos ferimentos. Dois dias depois, um menino de quatro anos foi atingido por uma bala perdida na comunidade da Linha, em São Gonçalo, na região metropolitana.
Ao longo de 2017, foram 16 tiroteios por dia, em média, de acordo com balanço do aplicativo Fogo Cruzado, que mapeia de forma colaborativa a violência armada na região metropolitana. De acordo com o relatório, 165.804 alunos da rede municipal de ensino foram afetados com suspensão de aulas em ao menos um dia do ano; o bairro onde os alunos perderam mais aulas foi Acari, com 45 dias de suspensão de um total de 198 no ano letivo 2017.
Falha de segurança no Carnaval
O governador do Rio admitiu na quarta-feira (14) que houve falha no planejamento de segurança durante o Carnaval. O feriado foi marcado por casos de violência; durante os quatro dias de festa, foram registrados assaltos, arrastões, espancamento e mortes.
"Não estávamos preparados. Houve uma falha nos dois primeiros dias e depois a gente reforçou aquele policiamento. Mas eu acho que houve um erro nosso. Não dimensionamos isso, mas eu acho que é sempre um aprimoramento, a gente tem sempre que aprimorar", afirmou em entrevista ao RJTV, da "TV Globo".
Especialistas apontam que a entrevista foi a gota d'água para que Michel Temer decidisse se reunir com ministros e com o governador para sugerir a intervenção federal.
Na madrugada do dia 12, foliões foram vítimas de três arrastões na avenida Vieira Souto, em Ipanema, um dos pontos mais nobres da zona sul. No dia 13, cerca de 150 pessoas vestidas de bate-bolas, fantasia tradicional do subúrbio, foram detidas sob suspeita de praticar um arrastão na região central durante a madrugada.
No último dia de folia, e diante da onda de violência em áreas nobres da cidade, a Polícia Militar decidiu reformular o esquema de segurança. O policiamento mais ostensivo só ocorreu na terça (14), quando se observou a presença mais ostensiva da polícia ao menos na orla.
"O policiamento foi reformulado seguindo as demandas apresentadas em algumas regiões, como a orla da capital onde foram alocados mais policiais militares, além do apoio do Grupamento Aeromóvel no monitoramento aéreo", disse a PM em nota.
Tanto Pezão como o prefeito Marcelo Crivella (PRB) deixaram a cidade durante o feriado --Pezão passou o Carnaval na sua cidade natal, Piraí, no interior do Rio, e Crivella foi para a Europa. Antes de partir, o prefeito disse que o Carnaval estava sob controle.
Pedidos recorrentes às Forças Armadas
De outubro de 2008 para cá, as Forças Armadas estiveram no Rio para reforçar a segurança estadual em 12 oportunidades. Com a intervenção federal, esta será a 13ª atuação do Exército no Estado em dez anos, sendo inédita a decisão do governo federal. Nas atuações anteriores, foi o governo estadual que pediu reforço.
Confira abaixo os 12 momentos em que as Forças Militares atuaram no Rio de Janeiro nos últimos dez anos:
- outubro de 2008 - Eleições municipais
- dezembro de 2010 a junho de 2012 – ocupação do Complexo do Alemão
- julho de 2011 – V Jogos Mundiais Militares
- junho de 2012 – Rio+20
- outubro de 2012 – eleições municipais
- julho de 2013 – Jornada Mundial da Juventude
- julho de 2014 – Copa do Mundo
- abril de 2014/junho de 2015 – ocupação do Complexo da Maré
- agosto de 2016 – Olimpíadas
- outubro de 2016 – eleições municipais
- fevereiro de 2017 – votação do pacote de austeridade
- julho de 2017/ dezembro de 2017 – implantação do Plano Nacional de Segurança no Rio
Para a socióloga Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, nos últimos anos, com atuações do Exército no Estado, em vez de melhorar, a segurança pública piorou. "Houve uma piora nos últimos anos. O Exército é treinado para outras situações. Eles têm uma função específica. O Exército não está preparado para esse tipo de ação. Mais uma vez, a gente está indo para o caminho errado", afirmou.
Procurados, a Seseg e o CML (Comando Militar do Leste) ainda não se manifestaram sobre o assunto.
Ministro disse que comando da PM é acertado com crime
Em entrevista ao blog de Josias de Souza, do UOL, o ministro da Justiça Torquato Jardim afirmou que "comandantes de batalhões são sócios do crime organizado do Rio". O ministro disse ainda estar convencido de que o assassinato do tenente-coronel Luiz Gustavo Teixeira, que comandava o 3º BPM (Méier), na zona norte do Rio, não foi resultado de um assalto, mas sim uma execução.
As declarações provocaram uma crise entre a pasta federal e o governo do Estado, com fortes reações de Pezão, do secretário Roberto Sá e do então presidente da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), Jorge Picciani (PMDB). O deputado chegou a dizer que Torquato mente, é "irresponsável" e "age com má-fé".
"Quando ele acusa todos os comandantes de estarem acumpliciados com o crime organizado, ele mente. A polícia tem punido os seus maus profissionais", declarou o deputado, que hoje se encontra preso acusado de atuar em prol de empresários na Alerj. O ministro da Justiça não rebateu.
Após a polêmica, em um evento em que também estava Pezão, o ministro se emocionou ao lembrar de sua infância e adolescência na cidade, quando havia menos violência, segundo ele. Também disse que seu compromisso no combate à criminalidade é "pessoal": "não abro mão."
Falta de planejamento e crise das UPPs
Para a socióloga Julita Lemgruber, em vez de "meses com presença física, com esse show pirotécnico", que, segundo ela, funcionou para tranquilizar os ânimos apenas por alguns dias, o investimento da segurança deveria ser em inteligência das polícias estaduais. Segundo a especialista, a intervenção é como se o governo estivesse tampando o sol com uma peneira.
"Logo a população percebeu que aquela ostensividade não tinha um planejamento maior por trás. Era apenas ocupação ostensiva para transmitir uma percepção de segurança. E a população vai perceber isso novamente. Não adianta presença. Tem de ter inteligência", afirma a socióloga.
Para o pesquisador João Trajano Sento-Sé, a situação é traumática para o Rio de Janeiro, que "explicita ainda mais abertamente a falta de capacidade de definição de política para o Estado. Não é um problema só para segurança pública, que talvez esteja mostrando sua faceta mais dramática desse desgoverno, mas mostra que o Estado e o governo estão na UTI. Em janeiro do ano que vem, entra um novo governador e zera tudo", afirma.
Em agosto do ano passado, o governo do Rio decidiu reduzir em 30% o efetivo das UPPs como forma de aumentar o número de policiais nas ruas, movimento que foi considerado um recuo no programa implantado em 2008 para tentar retomar áreas dominadas pelo tráfico.
Pesquisa Datafolha de outubro de 2017 mostrou que, se pudessem, 72% dos moradores dizem que iriam embora do Rio por causa da violência.
Procurada, a Seseg ainda não se manifestou sobre as críticas.
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