Socorro no Jacarezinho levou 3 horas; baleados chegaram mortos a hospital
Ao menos quatro dos 27 mortos pela polícia no Jacarezinho —os quais os agentes dizem ter socorrido— deram entrada em hospital três horas após terem sido baleados. Em média, o tempo de deslocamento da comunidade à unidade de saúde é de 30 minutos.
A informação foi obtida a partir de cruzamento entre os registros de ocorrência da Delegacia de Homicídios da Capital e os boletins de atendimento médico do Hospital Municipal Evandro Freire.
Especialistas dizem que há indícios de ilegalidades —eles questionam a demora para o socorro e colocam em dúvida se, em decorrência dos graves ferimentos descritos nos boletins de atendimento médico aos quais o UOL teve acesso, os homens já estavam mortos antes de serem removidos.
A Ouvidoria da Defensoria Pública suspeita de tentativa de desfazer a cena do crime para atrapalhar a elucidação do caso.
'Face totalmente dilacerada'
Eram 6h10 quando dois agentes da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) da Polícia Civil entraram no Jacarezinho no começo da operação mais letal do estado do Rio. Em registro de ocorrência, os policiais informaram ter encontrado um homem ainda com vida após suposto confronto. Em seguida, o suspeito ferido foi conduzido ao Hospital Evandro Freire, a 13 km dali.
Mas só chegou à unidade hospitalar já morto, três horas depois de ter sido baleado. O boletim de atendimento médico indica ferimento de arma de fogo "em face totalmente dilacerada".
O corpo do homem, posteriormente identificado como Carlos Ivan Avelino da Costa Júnior, 32, chegou ao hospital da Ilha do Governador, zona norte do Rio, às 9h19. E, em seguida, foi encaminhado ao IML (Instituto Médico-Legal), segundo consta no documento.
Mãe diz que morto era morador de rua e contradiz polícia
Na ocorrência, dois agentes da Core informaram ter encontrado ao lado dele granadas, drogas e um radiotransmissor.
Entretanto, documento de inteligência da Polícia Civil traz um depoimento da mãe dele, que diz que desconhecer que Carlos, em prisão domiciliar desde 2017 após ser preso por envolvimento com o tráfico, tivesse qualquer tipo de ligação com o crime organizado, já que era dependente químico e morador de rua.
Ferimentos na face, abdômen e tórax
No começo da tarde, entre 13h07 e 13h13, a equipe médica do hospital Evandro Freire registrou os boletins médicos de outros três corpos levados à unidade por policiais —todos eles apresentavam ferimentos causados por arma de fogo.
Com base no cruzamento de informações entre os boletins de atendimento hospitalar e as ocorrências policiais, foi possível identificar que três dos seis baleados em um suposto confronto com agentes da Core às 10h na favela do Jacarezinho —também três horas antes da chegada ao hospital— foram levados para a unidade.
Um deles também tinha "ferimento dilacerante na face", descrição compatível com tiro de fuzil no rosto. Os outros dois tinham ferimentos no abdômen e tórax, respectivamente.
No local, os agentes informaram ter apreendido drogas, dinheiro em espécie e armas de grosso calibre, características compatíveis com um ponto de venda de drogas.
Especialistas veem indícios de ilegalidade
Hospitais relataram que 26 dos 28 mortos na operação chegaram sem vida às unidades de saúde.
O perito criminal aposentado Cássio Thyone Almeida de Rosa, integrante do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, teve acesso aos boletins de atendimento encaminhados pela reportagem.
Ele questiona a demora até a chegada dos baleados ao hospital em decorrência da gravidade dos ferimentos e cita o caso em que o homem teve a face "totalmente dilacerada" pelo disparo.
O dilaceramento pode ter sido produzido por um projétil de fuzil, que a gente chama 'de alta energia'. A versão de um socorro efetivo produzido três horas depois para alguém atingido por disparo na face é incompatível. A descrição do médico sugere que a lesão é extremamente grave, com poucas chances de sobrevivência
O especialista também cogita a possibilidade de que os baleados já estivessem mortos na favela do Jacarezinho, o que pode indicar adulteração da cena do crime.
"A cena de crime foi palco de uma possível adulteração, que provavelmente tinha o propósito de dificultar algum tipo de investigação em relação à legalidade da ação."
Guilherme Pimentel, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, diz acreditar que o ideal é a Polícia Civil montar uma cronologia das ações e reforça a preocupação com o desfazimento dos locais de mortes.
"O que vimos no Jacarezinho foi a falta de cuidado com os locais. O Ministério Público tem que apurar porque é fundamental preservar o local do crime e as provas do que aconteceu, de forma séria", avalia. "Relatos de moradores afirmam que corpos sem vida foram levados embora."
O que diz a Polícia Civil
O UOL procurou a Polícia Civil para questionar o motivo da demora do atendimento. A corporação voltou a citar um vídeo enviado à reportagem, que mostra um homem não identificado sendo levado em uma viatura, para indicar que houve resgate de pessoas com vida.
"O tempo entre o socorro e a chegada ao hospital está diretamente ligado à ausência de estabilização do terreno, onde os criminosos, durante todo o tempo, atiraram para matar", diz um dos trechos da nota enviada pela Polícia Civil.
"Os socorros realizados seguem protocolo padrão de encaminhamento para unidades hospitalares próximas, desde que haja disponibilidade para o atendimento. Para não sobrecarregar a logística dos hospitais, por vezes é necessário encaminhar os socorridos para mais de uma unidade", justificou, ao ser questionada sobre o encaminhamento a mais de uma unidade de atendimento.
A Polícia Civil disse ainda que todos os detalhes da ação serão esclarecidos no inquérito policial em andamento, acompanhado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio).
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