Luto, fome e solidariedade: moradores lidam com vida e morte no Jacarezinho
No dia seguinte à operação policial mais letal da história do estado do Rio, que deixou 28 mortos no Jacarezinho, os moradores se mobilizavam em uma quadra para oferecer suporte às famílias, que hoje recebem atendimento psicológico oferecido por voluntários da própria comunidade.
Com o sexto pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os bairros da capital fluminense, a favela luta contra a miséria em meio a um cenário de luto. A ONG Rio de Paz é uma das que ajudam a diminuir a fila da fome.
Segundo a organização, cerca de 300 famílias são atendidas regularmente com distribuição de "quentinhas", legumes, verduras, frutas e cestas básicas. Nesta semana, a Cufa (Central Única das Favelas) doou uma tonelada de macarrão para a associação de moradores.
A comunidade também mobilizou uma vaquinha virtual para reconstruir uma quadra de esportes, que teve o teto perfurado em uma operação policial após o assassinato do delegado Fábio Monteiro, morto após ter sido identificado como policial pelo tráfico de drogas que atua na região.
Aqui na comunidade, até caixa de sapato vira moradia. Há uma grande concentração de pessoas morando em barracos e palafitas. O Cristo Redentor está de braços abertos. Mas os governantes seguem de braços cruzados para o Jacarezinho.
Leonardo Pimentel, presidente da associação de moradores
Segundo a Prefeitura do Rio, cerca de 40 mil pessoas moram na região. Contudo, a associação de moradores estima um número bem mais expressivo: cerca de 140 mil pessoas —muitas delas sem acesso ao básico.
"A minha preocupação, meu amigo, é com as crianças, que precisam estudar para ter uma vida melhor. Sem oportunidades, jovens de famílias desestruturadas acabam fazendo escolhas erradas. Aqui, somos nós por nós mesmos", diz o presidente da associação de moradores.
Para a entidade, o mais difícil é estabelecer critérios para priorizar as famílias em situação mais grave. Logo em frente, catadores organizam sacos de lixo para reciclagem. Em uma localidade conhecida como Pistão, o lixo se acumula na calçada e invade a rua.
Em uma ocupação conhecida como Carandiru, em um prédio de quatro andares na rua Miguel Angelo, os cômodos são divididos por pedaços de madeira ou lençóis. Falta água, saneamento básico e há esgoto a céu aberto.
Mas Pimentel ainda nutre a esperança por dias melhores. E busca nas recordações da própria infância algum tipo de conforto, quando os moradores acompanhavam a Copa do Mundo de 1994 pela TV para torcer por "Romário do Jacarezinho". "Ele é um de nós", diz.
Miséria e abandono
A miséria e o abandono fazem parte da paisagem de quem cruza a movimentada avenida Dom Hélder Câmara, no principal acesso ao Jacarezinho, onde é possível ver moradores de rua buscando abrigo em barracos improvisados.
A cena contrasta com a grande movimentação de pessoas na rua Amaral Rangel, próximo à linha do trem, onde o comércio funcionava normalmente na tarde de 7 de maio, dia seguinte à operação policial na favela.
O UOL acessou os estreitos becos que cortam a região mais movimentada do Jacarezinho. Os buracos de tiro espalhados pelas paredes remontam um cenário de guerra e sobrevivência para moradores despertados pelo som de disparos de armas de grosso calibre e rasantes de helicóptero da Polícia Civil.
A paisagem no beco da Síria, palco de ao menos três ações da polícia com mortes, ilustra a realidade de quem se viu entre a vida e a morte entre os tiros. Só é possível ver o céu por uma estreita fenda entre prédios de até quatro andares próximos uns aos outros, enquanto uma caixa d'água perfurada por um tiro formava uma espécie de cachoeira.
Quando começaram os tiros, fiquei deitado no chão do banheiro.
José Firmino Melo, 68, aposentado
Com certa naturalidade, uma senhora negra conta que um dos seus filhos faleceu há 17 anos ao ser baleado pela polícia em fuga. Segundo ela, o outro só não faz parte da lista de mortos na operação policial do Jacarezinho porque foi preso há dois meses. Melhor preso do que morto, diz ela.
Relatos de solidariedade e acolhida
Aos 20 anos, Maria da Penha veio com a família da Paraíba para o Rio de Janeiro, onde se instalou na favela do Jacarezinho, há mais de quatro décadas. Agora com 62, diz que lida com as dificuldades por lá em meio a um cenário de violência urbana graças à solidariedade da vizinhança. "Apesar dessa violência toda, aqui é meu lar", diz.
Luíza Santos, 26, chegou há três anos de uma outra favela carioca. "Eu estava grávida. E nunca me senti tão acolhida. Sempre tinha alguém que perguntava se eu precisava de algo. O que nos mantém é a nossa união, a nossa cumplicidade", conta.
Terreno doado por família de Getúlio
Segundo historiadores e moradores da região, a favela, considerada a mais preta do Rio justamente por ter sido o local onde a maioria dos escravos trazidos para o Brasil se instalaram, começou a ser urbanizada em 1920.
"O nome do bairro do Jacaré veio da palavra 'Yacaré', do tupi, que significa sinuoso, em alusão às curvas do rio que deu nome à região. Em 1992, após o local já estar tomado por construções, a favela do Jacarezinho se desmembrou do bairro do Jacaré e se transformou em um novo território", explicou o historiador Marcos Feitosa.
A comunidade, às margens da linha do trem entre os bairros de Manguinhos e Maria da Graça, pertenceu à família do ex-presidente Getúlio Vargas, que doou o espaço para as famílias locais.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.