Estatística de morte por policiais no Rio exclui Ágatha, Emily e Rebecca
Assassinatos como o da menina Ágatha Vitória, 8, atingida por um tiro de fuzil em uma ação policial no Complexo do Alemão, e das primas Emily, 4, e Rebecca, 7, baleadas no portão de casa na Baixada Fluminense, não fazem parte das estatísticas de mortes por intervenção policial no estado do Rio.
Levantamento feito pelo UOL constatou casos de inocentes atingidos em ações policiais nas favelas cariocas registrados como homicídios dolosos. Especialistas em segurança pública dizem que o critério gera subnotificação e impossibilita o rastreio com precisão das mortes causadas por policiais, o que impacta na elaboração de políticas de segurança.
O UOL identificou que ao menos 14 casos de inocentes mortos em ações policiais com indícios fortes de envolvimento de agentes não constam nas estatísticas de mortes causadas pela polícia. As informações relativas ao período de 2019 a abril de 2021 foram obtidas via LAI (Lei de Acesso à Informação) junto à Polícia Civil. As vítimas possuem perfil semelhante: são jovens, negros e moradores de favelas
O pesquisador Daniel Hirata, do Geni-UFF (Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), vê subnotificação e impacto nas políticas de segurança pública.
"São homicídios cometidos por agentes do estado durante o exercício das suas atribuições. Essa é uma categoria administrativa que é convertida em estatística. O levantamento [do UOL] mostra o quanto as mortes resultantes das ações policiais são subnotificadas", analisa.
O ISP (Instituto de Segurança Pública) —que compila as estatísticas com base nos registros de ocorrência— afirmou que, se a investigação entender que o policial matou "sem justificativa" em uma ação, o registro será de homicídio doloso.
Se aplicado o excludente de ilicitude —quando o policial mata para se defender ou no cumprimento do dever—, a morte é classificada como intervenção de agente do estado.
Casos como os de Ágatha, Emily e Rebecca foram registrados como homicídio, apesar dessas mortes terem sido resultantes de ações policiais. Essa forma de classificar e categorizar compromete o entendimento dos efeitos da violência letal das polícias"
Daniel Hirata, pesquisador do Geni-UFF
Renato Sérgio de Lima, presidente do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), vê falta de qualidade nas estatísticas e defende que os critérios sejam revistos.
Casos como a morte da Agatha fazem parte de um fenômeno de vítimas de bala perdida, uma peculiaridade do Rio de Janeiro que não entra na estatística. Falta um controle de qualidade. E isso é grave. É uma situação que precisa ser revista."
Renato Sérgio de Lima, presidente do FBSP
O sociólogo Ignacio Cano, do LAV-Uerj (Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), também questiona a classificação dessas mortes. "A política de segurança atual tenta naturalizar [as mortes por policiais] e classificá-las como coisas diferentes, porque os policiais acham que não cometem crime."
O pesquisador afirma contudo que, na prática, a tendência é de que policiais evitem categorizar casos como homicídios. Ele indica que as investigações de mortes por intervenção policial levam à impunidade.
A tradição jurídica do Brasil mostra que ao cometer o homicídio, a pessoa tem que ser presa em flagrante. Se for legítima defesa, pode ser liberada. Quem mata alguém tem de se explicar em uma investigação. Quando a polícia mata alguém, a máquina funciona de modo a não haver investigação."
Ignacio Cano, pesquisador do LAV-Uerj
Procurada, a Polícia Civil não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Atrasos na investigação e sensação de impunidade
Além de Ághata, histórias como a de João Vitor Dias Braga, um homem negro de 22 anos baleado por PMs em abril de 2019, de acordo com sua família, também não constam nas estatísticas de mortes por intervenção policial. Testemunhas afirmam que os agentes confundiram uma furadeira com arma de fogo na Taquara, zona oeste carioca. O inquérito ainda não foi concluído.
O problema passa pelo tempo exagerado de investigação. Mas também pela falta de autonomia das perícias, que contribui para um cenário de impunidade. É um ataque contra negros e pobres, sempre tratados como suspeitos, e não como cidadãos."
Guilherme Pimentel, defensor público
As mortes de Emily e Rebecca também foram registradas como homicídio doloso. A família diz que o disparo partiu de uma viatura da PM no momento em que elas estavam no portão, em dezembro de 2020.
Em junho, a Polícia Civil divulgou que o confronto balístico entre as armas dos PMs e o projétil que atingiu as meninas teve resultado inconclusivo. Não há prazo para conclusão do laudo da reconstituição do crime, ocorrida há quatro meses.
O tiro partiu da direção onde estava o carro da polícia. Não houve confronto. Eles [policiais militares] só atiraram na direção onde as crianças estavam brincando e saíram. Aí, atravessei a rua e vi as meninas caídas."
Lídia Moreira Santos, avó de Rebecca e tia de Emily
Ela foi surpreendida pela informação repassada pela reportagem de que o caso não consta nas estatísticas de morte por intervenção de agente do estado. "É revoltante! A gente só quer que o Estado reconheça o que fez", desabafou.
"São casos em que há comprovação de abuso e violações. Mesmo assim, grande parte dos policiais que cometem execuções é inocentada. Quando responsabilizados, acabam se safando porque respondem por homicídio culposo [quando não há a intenção de matar]", disse Nadine Borges, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ao analisar o levantamento do UOL.
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