'Passei quase 3 anos buscando pelo meu pai e o corpo dele estava no IML'

Em março de 2021, o aposentado David Soares de Abreu desapareceu logo após ter vendido, sem avisar a família, o imóvel em que morava em Mongaguá, no litoral de São Paulo. Após quase três anos procurando pelo pai, uma das filhas, Livia Oliveira Abreu, descobriu que ele havia morrido e que o seu corpo foi encontrado uma semana após o desaparecimento. Aguardando identificação, o idoso, então com 67 anos, passou um ano numa gaveta no IML e acabou enterrado como indigente no único cemitério da cidade.

Durante dois anos e oito meses, o desaparecimento de Abreu esteve cercado de mistério, desde a venda da casa em que morou por mais de sete anos, em um bairro periférico do município. Os familiares só souberam do negócio ao visitarem a casa e descobrirem que havia outra pessoa ocupando o imóvel.

O último contato que a família teve com Abreu foi no dia 19 de março de 2021. Vítima de um AVC dois anos antes de desaparecer, o homem era separado da esposa havia 20 anos, e tanto a mulher quanto os quatro filhos do casal moram na capital paulista.

"Eu contava mês a mês o desaparecimento dele. Não tinha um dia em que não pensávamos nele. Todo dia 19 e 20 eu postava algo nas redes sociais sobre o desaparecimento dele. Fiquei assim esses anos todos", contou Livia ao UOL. "Eu tinha como certo que meu pai havia sido assassinado. Eu achava que alguém tinha jogado ele do alto de um morro".

O tempo de espera foi uma tortura para a família do aposentado, principalmente pela incerteza sobre o que havia ocorrido. Livia sonhava com ele quase todos os dias e, geralmente, iniciava uma briga por conta de seu desaparecimento. "Eu brigava com ele nos sonhos, perguntava por que ele fez isso com a gente. Até que finalmente descobri o que tinha acontecido".

A filha conta que ligava semanalmente para a delegacia de Mongaguá em busca de informações. E que, aconselhada por uma agente da Polícia Civil, decidiu procurar uma unidade do órgão em São Paulo para fazer uma coleta de DNA. Ela foi informada que o pai poderia ter sido localizado, mas que sua identificação poderia não ter sido possível.

"E foi o que aconteceu. Fiz a coleta de DNA, a polícia colocou no banco de dados e encontrou a ficha de um homem, que havia sido enterrado como indigente e que passou um ano no IML esperando por reconhecimento. Era o meu pai", relatou Livia. "Dá para imaginar que o meu pai ficou um ano numa gaveta refrigerada esperando por nós, pela família, para que pudéssemos dar um descanso para ele?", questiona.

O resultado saiu no dia 14 de novembro e deu positivo para a relação de vínculo genético familiar com o obtido do "Cadáver Desconhecido 66/2021". Foi quando a família enfim descobriu toda a história. O corpo de Abreu foi encontrado pela polícia na noite do dia 20, um dia após o desaparecimento. Ele estava em uma área de mata, ao final de uma estrada de terra, no Balneário Estrela Marinha, às margens do rio Aguapeú.

Corpo foi carbonizado

Segundo o exame necroscópico realizado à época, além de apresentar marcas de violência, o corpo de Abreu havia sido carbonizado, o que dificultou sua identificação, pois o cadáver não tinha digitais. Além disso, o médico-legista atestou que o corpo necropsiado, do sexo masculino, deveria ter entre 25 e 35 anos, faixa etária muito distante dos reais 67 anos da vítima.

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Observando os ferimentos, em sua maioria localizados na caixa craniana, a causa da morte foi apontada como "traumatismo crânio encefálico devido à ação de agente contundente". A mão direita, que segundo Livia estava comprometida por conta do AVC, estava amarrada com um cinto.

Livia conta que ainda tem várias dúvidas com relação ao caso. Ela não entende como ao mesmo tempo que chega à delegacia da cidade uma queixa por desaparecimento, chega um corpo não identificado e os casos não foram nem sequer conectados.

"Nem cogitaram que o corpo carbonizado podia ser do idoso que estava desaparecido. E assim eu passei quase três anos buscando meu pai. Também só fiquei sabendo do reconhecimento por DNA recentemente. E foi somente no dia 29 de novembro que descobri que papai estava enterrado como indigente no cemitério da cidade", conta a filha.

"Quando soube da morte, e da forma como foi, que ele havia sido carbonizado, eu comecei a tremer. Eu pedi para a pessoa repetir algumas vezes, porque eu não conseguia entender, uma colega então pegou o telefone e continuou a conversa, porque eu não tinha como conversar mais. Fiquei em choque, paralisada", lembra.

Livia acredita que, de alguma maneira, a morte de seu pai está conectada à venda do imóvel em que ele morava. Além do preço de venda ter sido muito abaixo do mercado, ela garante que não reconhece a assinatura do pai no contrato. Ela afirma que, desde o início, a preocupação da família não era com o imóvel em si, mas com o desaparecimento de Abreu.

Depois de conseguir encontrar o corpo do pai, Livia realizou, com a presença de alguns amigos e familiares, uma homenagem em frente ao túmulo dele. Ela diz que foi uma forma de se despedir, já que a família foi privada da realização do funeral.

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"Rezamos por ele. Coloquei a mão no caixão e disse: 'eu não desisti de te encontrar e agora eu não desistirei até colocar o responsável na cadeia. Agora eu vou até o fim'".

Em busca dos autores

Procurada pelo UOL, a Polícia Civil de Mongaguá informou que a localização do corpo representa a descoberta da materialidade de eventual crime. "Ou seja, a partir de agora a investigação se volta por completo para identificação de eventual autoria, dos responsáveis pelo fato", informou o órgão.

O inquérito, iniciado para apurar as circunstâncias do desaparecimento de Abreu, agora será voltado para diligências e oitivas que busquem identificar autores e causa de sua morte.

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