'Meu filho denunciou policiais e foi morto por encapuzados'

A professora Ana Maria dos Santos Cruz, 57, busca justiça pelo filho, o ativista Pedro Henrique, assassinado em 2018 aos 31 anos.
Ele foi executado com oito tiros por três homens encapuzados que invadiram sua casa em meio a constantes denúncias que ele fazia sobre abusos da Polícia Militar em Tucano (BA).

Na época, Pedro organizava a "Caminhada da Paz", uma manifestação anual contra a violência policial na cidade. A única testemunha do crime, a namorada dele, reconheceu os autores como sendo policiais. Até hoje, o caso não chegou aos tribunais, ainda que Ana Maria tenha sido alvo de sucessivas ações na Justiça por falar sobre a morte do próprio filho.

Não podemos deixar essa história suspensa, sem respostas. Mas acredito que o legado dele vai além disso, independentemente do resultado -- se os autores ficarem soltos ou não -- a nossa obrigação é manter o legado de Pedro por igualdade. Ele sempre ajudou o próximo e chamava atenção para isso. Enquanto eu estiver aqui, essa história vai ser contada.
Ana Maria dos Santos Cruz

A Polícia Civil informou que indiciou dois policiais militares pelo crime. O caso foi remetido para a Justiça em novembro de 2020. Procurada pela reportagem, a Polícia Militar se absteve de comentar o caso e orientou buscar respostas com o Ministério Público.

Quem era Pedro

Pedro tinha "lado artístico" e o gênio forte, segundo a mãe. "O Pedro era muito fã dos Racionais e do Sabotage. Ele também era muito apaixonado por MPB e tinha um talento muito grande para a pintura. Era todo virado para esse lado artístico."

Era o filho do meio de três irmãos. "Tenho dificuldade de dizer que só tenho dois filhos porque o Pedro não é uma lembrança. Ele está presente em nossas vidas. Além dele, sou mãe de um homem de 37 anos e uma mulher de 27."

Pedro Henrique decidiu se mudar para Tucano depois de uma abordagem violenta
Pedro Henrique decidiu se mudar para Tucano depois de uma abordagem violenta Imagem: Arquivo pessoal


A relação com Tucano começou após o pai mudar para a cidade. "Meu marido se aposentou e foi morar em Tucano. Pedro ia visitá-lo com frequência. Uma dessas visitas foi no dia 31 de outubro de 2012, quando tudo começou."

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Pedro foi alvo de uma abordagem policial violenta. "Ele tinha cabelos grandes, com dreads — e era forasteiro. Estava parado na frente da casa do pai quando veio uma viatura e o policial já foi questionando quem ele era, o que estava fazendo na cidade e que ele deveria ser fugitivo da Justiça. Levaram ele na viatura para outro bairro, ele apanhou de cassetete e levou uma coronhada que deformou o olho dele. Pedro foi largado no meio da rua e foi andando para o hospital sozinho, até que um amigo do meu marido encontrou ele."

Denúncia e reconhecimento do policial. "No dia seguinte, ele já estava na delegacia. O pai dele foi até a cidade para acompanhá-lo. Na delegacia, ele encontrou com o agressor. Tentaram persuadi-los para não fazer o registro, mas eles fizeram mesmo assim."

Em audiência, Pedro foi ameaçado. "O inquérito chegou na Justiça descaracterizando o crime tortura para lesão corporal e abuso de poder. Assim que acabou a audiência, um policial já saiu ameaçando ele, dizendo que isso iria custar muito caro. E a partir daí começaram as perseguições."

A 'Caminhada da paz'

Pedro organizava as 'Caminhadas da Paz' em Tucano
Pedro organizava as 'Caminhadas da Paz' em Tucano Imagem: Arquivo pessoal

A agressão motivou Pedro a fazer uma manifestação na cidade de Tucano e se mudar para lá. "O inquérito demorou e em fevereiro do ano seguinte, em 2013, Pedro decidiu fazer a primeira Caminhada da Paz."

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As caminhadas também eram momento para promover solidariedade entre a população. "A partir do segundo ano, Pedro se reuniu com alguns amigos e eles começaram a arrecadar cesta básica para distribuir para as pessoas mais vulneráveis. O movimento foi bem recebido pela população."

Mas as tensões com as autoridades policiais só aumentavam. "O policial passou a abordar ele diversas vezes. Era como uma perseguição mesmo. Não batia, mas humilhava. Pedro continuou vivendo e fazendo as caminhadas dele, registrando todas as ocorrências no Ministério Público. Mas nada acontecia. Em 2017, esse policial foi transferido para Euclides da Cunha [57 km de Tucano], mas mesmo com ele sumindo de cena, apareceram outros três policiais militares para continuar com as abordagens com Pedro. Esses batiam e xingavam ele. Mas Pedro registrava tudo."

Pedro acabou virando um porta-voz contra a violência policial. "Ele começou a receber denúncias de outras pessoas que também sofriam essas abordagens. Tinha até acompanhado essas pessoas em delegacias, nos fóruns. Virou uma referência no assunto — tanto da parte do povo que via nele um amparo, como dos policiais, que viam ele como um problema."

A prisão

Pedro foi preso pela primeira vez no dia 26 de outubro de 2018, véspera do segundo turno das eleições presidenciais. "Ele estava publicando nas redes sociais que policiais estavam no bairro onde ele morava, em Nova Esperança, invadindo as residências, batendo em famílias, quebrando coisa de casa. Falei para ele tomar cuidado, que eles poderiam ir até lá. Passaram poucos minutos, o pai dele me ligou dizendo que haviam prendido ele. Entraram na casa e encontraram maconha, que Pedro plantava para consumo próprio."

Ele foi solto em menos de 24 horas. "Lavraram um auto de prisão em flagrante, mas a prisão foi descaracterizada como crime e o caso entendido como plantação para uso próprio. Assim, o inquérito não foi adiante. Aí acho que o ódio [dos policiais] aumentou."

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A Justiça entendeu que houve "violação de domicílio", já que policiais não tinham determinação judicial. Em documentos obtidos pelo UOL, o juiz responsável optou pela nulidade da prisão em flagrante tanto pela falta de respaldo legal para a ação policial quanto por entender que não houve consentimento de Pedro para que os policiais entrassem em sua casa. Além disso, o juiz entendeu que não havia provas para apontar que o plantio estava destinado à venda.

Aceitar o caso ora em comento como flagrante é o mesmo que legitimar operações policiais sem um mínimo de controle judicial, operações essas que, na maioria dos casos, resulta em violação das garantias constitucionais da população mais pobre.
Trecho da decisão

Lei de Drogas diferencia quando o cultivo de maconha é para consumo pessoal e tráfico ilegal. Apesar de ser considerado crime em ambos os casos, quando o cultivo é para consumo pessoal as penas são restritivas de direitos, como advertência, serviço comunitário ou curso educativo, conforme explica o advogado Emílio Figueiredo. Se há entendimento que é para o tráfico, a pena é de 5 a 15 anos de cadeia. "Há também a possibilidade, segundo a jurisprudência que reconhece o habeas corpus para o cultivo para fins medicinais, que deve ser amparado acompanhamento médico com prescrição do uso da cannabis como remédio".

O assassinato

Pedro foi enterrado na cidade em que morreu, em Tucano (BA)
Pedro foi enterrado na cidade em que morreu, em Tucano (BA) Imagem: Arquivo pessoal


Dois meses depois da prisão, Pedro teve a casa invadida. "Primeiro, arrombaram a casa do pai dele. Arrastaram ele de cueca para a rua e obrigaram-no a mostrar onde era a casa de Pedro. Então, invadiram a casa de Pedro. Ele dormia com a namorada. Chegaram e já dispararam oito tiros contra Pedro, na cabeça e no pescoço. E fugiram."

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A namorada reconheceu os executores como sendo policiais. "Ela já tinha presenciado várias abordagens. Além disso, os encapuzados tinham o rosto parcialmente à mostra e ela pode reconhecer tanto por isso, quanto pela voz e pelo jeito."

Um inquérito sobre o caso foi aberto, mas não houve conclusão. "Até hoje, depois de cinco anos, não temos uma resposta. Agora, o caso está com o Ministério Público, mas ainda não virou processo. É um simples inquérito da polícia inconcluso. Ninguém foi responsabilizado."

Ana, no entanto, foi alvo de seis processos por calúnia. "Alegaram crime contra honra por eu estar denunciando o que está acontecendo. Tenho que lutar com as armas que tenho, que só é a minha voz. No dia que saiu a reportagem em uma TV, eu já recebi uma intimação da Justiça. Nunca usei o nome deles, mas eles querem me impedir de contar a história."

Se a intenção era calar Pedro e fazer com que ele desaparecesse do cenário, isso não vai acontecer. Pedro foi enterrado em Tucano. Fizemos um mausoléu muito bonito. Pedro não está mais ali, mas é uma homenagem e continuaremos. Mesmo depois se houver condenações, não vamos parar com o trabalho que Pedro começou.

O que dizem as autoridades

O Ministério Público disse que investigações foram concluídas, mas caso está em análise. O órgão ainda disse que abriu uma investigação própria por meio da 2ª Promotoria de Justiça de Tucano e pelo Grupo Especial Operacional de Segurança Pública (Geosp), que também foi concluída. Segundo o órgão, "as informações apuradas estão em análise para tomada das medidas cabíveis."

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A Defensoria Pública analisou a situação como uma prática de "lawfare", segundo artigo publicado em 2021. O termo é utilizado para designar quando há abuso do direito, uso de estratégias judiciais ou manipulação de leis contra um "inimigo". Em 2019, a Defensoria encaminhou um ofício ao Ministério Público da Bahia relatando a situação.

Caso é acompanhado pela Defensoria. Em nota enviada ao UOL, o órgão disse que ainda presta auxilio e orientação jurídica à família de Pedro, incluindo nos seis processos movidos por policiais militares contra Ana. A Defensora também informou que ajuizou ação indenizatória "objetivando assegurar reparação aos familiares."

Procurado pelo UOL, o advogado dos policiais informou que não dá entrevistas sobre esse caso.

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