Projeto pode dificultar que vítimas gravem agressão, como no caso Da Cunha

Um projeto de lei aprovado em uma comissão da Câmara pode tornar mais difícil o uso de celulares para registro de violência doméstica, como no caso em que a ex-companheira do deputado federal Delegado Da Cunha (PP-SP) o acusa de agressão. O texto prevê que os aparelhos emitam ruído ao capturar uma foto ou um vídeo.

O que aconteceu

Proposta altera lei Carolina Dieckmann. A Comissão de Desenvolvimento Econômico aprovou o texto na semana passada. Ele propõe alterações na lei conhecida como Carolina Dieckmann, que incluiu no Código Penal a tipificação de crimes virtuais e delitos informáticos. Ele ainda precisa ser analisado por duas comissões, o que não tem data para acontecer.

Se aprovada, a lei vai obrigar as empresas de celular a aplicar o padrão de som para novos aparelhos na fábrica. No caso dos que já estão em circulação, as fabricantes seriam obrigadas a oferecer atualização do sistema.

Autor diz que o objetivo é combater invasão de privacidade em casos de crimes sexuais. Segundo o deputado José Guimarães (PT-CE), o projeto visa impedir "predadores sexuais" de "fotografar clandestinamente suas vítimas e explorar suas imagens".

O projeto nasceu de uma demanda de mulheres do Ceará que reclamavam da importunação sexual dentro de transporte público. A intenção é inibir aquele que tem o objetivo de cometer o ato de importunação ou assédio sexual.
Deputado José Guimarães (PT-CE), autor do projeto

Texto fala em alertar a vítima. O projeto de lei diz que "a imposição de uma configuração prévia de criação de um ruído na utilização de câmeras digitais certamente não será eficaz em coibir a mente mal-intencionada e criminosa de fazer uso indevido destes aparelhos, mas pode revelá-los, contribuindo assim para alertar a vítima".

Imagens como prova judicial

Apesar de a justificativa ser a proteção da vítima, o projeto de lei acaba por prejudicá-la, segundo especialistas. Imagens captadas por celular ajudam a desvendar muitos crimes, disse Silvia Piva, mestre em direito e pesquisadora do uso de tecnologia em processos judiciais.

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A tecnologia vem para auxiliar, mas pode ou não ser bem utilizada. Às vezes, é a única forma que a pessoa tem de provar o que aconteceu. Um exemplo disso é aquele caso de um médico anestesista que estuprou uma mulher em trabalho de parto. Ela estava em situação de vulnerabilidade, e o crime foi desvendado porque foi filmado com um celular.
Silvia Piva, advogada

Vídeo levou à prisão de médico anestesista por estupro. A especialista faz referência ao caso em que o médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra, de 32 anos, foi preso sob acusação de estuprar uma paciente sedada após um parto em um hospital de São João de Meriti (Baixada Fluminense).

Caso Da Cunha também tem imagem com câmera escondida. O deputado federal Delegado Da Cunha (PP-SP) foi acusado de agredir e ameaçar sua ex-companheira, Betina Grusiéck. Imagens gravadas com o celular, escondido na bolsa dela, foram apresentadas como prova.

Deputado nega agressão física. Da Cunha admite violência verbal, mas nega ter agredido a ex-companheira. Sua defesa alega que o vídeo não deveria ser exposto, pois não foi analisado em uma perícia técnica. As imagens foram divulgadas pelo Fantástico.

Violência doméstica normalmente não tem testemunha

O crime de violência doméstica normalmente acontece sem ter testemunhas, é só a vítima. Então qualquer outro elemento que corrobore seu depoimento ajuda a dar mais veracidade a ele.
Paulo Henrique Oliveira, delegado de Polícia Civil

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Casos de violência doméstica dificilmente teriam repercussão sem imagens, segundo Silvia.

Será que, se aquela câmera tivesse feito um som, a gente teria pegado aquele fato? O som exporia vítima. Você vai proteger a privacidade de uma pessoa, como diz o projeto, mas vai impedir o uso da tecnologia para outra se proteger.
Silvia Piva, advogada

Imagens de celular também já serviram como prova de violência policial. Como contraponto às versões oficiais, pessoas filmam abordagens e expõem abusos em operações, como agressão e violação de domicílio.

Autor diz que proposta ainda pode ser aprimorada. Questionado sobre as críticas, o deputado José Guimarães afirmou ao UOL que o mérito do projeto ainda será mais debatido nas próximas comissões.

O texto ainda não discute esse contraponto, mas com certeza esse mérito será debatido nas comissões, assim como outros. A ideia principal era ter um mecanismo para coibição dos atos de importunação e assédio sexual.
Deputado José Guimarães (PT-CE), autor do projeto

Legislação de outros países

O ruído na captura de imagens é obrigatório no Japão e na Coreia de Sul. Também há um projeto semelhante nos Estados Unidos, travado desde 2009. Mas não existem dados concretos sobre a eficácia dessas leis, de acordo com Marcos Barreto, especialista em cibersegurança e Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e professor da Fundação Vanzolini.

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É algo que não parece ter dado resultado em outros países. Nos casos que vi, a grande maioria da população é contra essa medida, Além de servir para casos de violência doméstica, servir para vários outros, como quando estão tirando foto de um bebê, por exemplo, e não se pode acordá-lo.
Marcos Barreto, especialista em cibersegurança e LGPD

Toda vez que você tenta regular uma tecnologia, vai vir outra coisa para tentar burlar. O som dessa câmera, possivelmente, vai ser burlado a partir de um app que tira o som. Então será que essa lei vai ter efetividade? Será que é a medida mais eficaz para você combater coisas desse tipo?
Silvia Piva, advogada

O ruído obrigatório é um método antiquado. Já existem tecnologias melhores para identificar autores de crimes sexuais baseados na divulgação de fotos intimas, diz Barreto

Há leitores de imagem que permitem saber qual celular tirou determinada foto e, portanto, rastrear os passos pelo registro. Se alguém tirar uma foto inadequada, vai ficar registrado quem a tirou. Obviamente, nada disso impede a divulgação da imagem --não há como impedir a divulgação da imagem--, mas pelo menos permite a responsabilização.
Marcos Barreto, especialista em cibersegurança e LGPD

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