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O dia em que Bolsonaro foi a uma live para ouvir a palavra do whey protein

O presidente Jair Bolsonaro é entrevistado no Ironberg Podcast, dedicado ao fisiculturismo - Reprodução
O presidente Jair Bolsonaro é entrevistado no Ironberg Podcast, dedicado ao fisiculturismo Imagem: Reprodução

Do UOL

26/08/2022 20h38Atualizada em 26/08/2022 20h39

Jair Bolsonaro tinha quase duas horas, e levou com ele milhares de seguidores a acompanhar, na sexta-feira (26), a gravação ao vivo de sua participação no Ironberg Podcast, do influenciador digital fitness Renato Cariani.

O capitão saiu da entrevista para o humorístico Pânico, da Jovem Pan, no início da tarde, e foi direto para a academia.

Lá, foi recebido pelo dono do canal e o médico — e também influencer — Paulo Muzy para?ouvir demandas do setor.

Se, no Pânico, ele falou o que quis, e como quis, no encontro com os fisiculturistas, Bolsonaro passou quase metade do tempo quieto. Isso acontecia basicamente em duas ocasiões: quando deixava claro que não tinha ideia do que deveria responder a respeito de questões específicas envolvendo suplemento alimentar e atividade física e quando os anfitriões resolviam dar as respostas para as questões.

A programação foi interrompida algumas vezes para o apresentador para fazer merchan de uma marca de whey protein — uma propaganda do produto abriu a entrevista — e de um curso de formação em finanças.

Quem fez troça da participação do presidente em um programa com dois musculosos perdeu a chance de ouvir uma espécie de palestra a respeito de saúde preventiva, estética e a relação entre alimentação e o mundo fitness.

Estamos, afinal, no país que possui o segundo maior número de academias do planeta, segundo Muzy, e o presidente passou a falar ao coração dos donos de estabelecimentos quando decidiu que eles deveriam permanecer abertos no auge de uma pandemia que ceifava vidas pela transmissão de um vírus com mais chances de transmissão em aglomerações e lugares fechados.

Para a turma, Bolsonaro virou herói de vez quando, há alguns dias, zerou o imposto do whey protein.

Só que, na entrevista, o presidente deixou transparecer que tinha tanto conhecimento a respeito de suplemento de proteína quanto tinha de política sanitária durante a crise da covid-19.

Dessa vez ao menos se mostrou disposto a ouvir.

A gravação aconteceu em um estúdio improvisado de uma academia do ABC onde se via ao fundo homens e mulheres andando na esteira com a camisa amarela da seleção.

"É um ambiente gostoso?", quis saber o apresentador.

"É um ambiente muito saudável aqui, né? Muito bacana", disse Bolsonaro, com um misterioso meio sorriso.

Nas relações entre políticos e grupos de interesse privado, é comum, para qualquer autoridade, receber sugestões e orientações de representantes de determinado setor.

Os anfitriões inovaram ao tentar sensibilizar as atenções do presidente em uma live que chegou a ter no pico quase meio milhão de espectadores.

Alguém do entorno do ex-capitão pensou que fosse uma boa ideia para sua estratégia de tentar virar votos a menos de dois meses da eleição. Havia um universo inteiro a ser fidelizado, mas na prática ele serviu ali como ouvinte, quase o tempo todo, de uma pregação apaixonada sobre a importância da musculação em geral, e do fisiculturismo em específico — um esporte que salva vidas, desafoga hospitais, tira do corpo o demônio da obesidade, devolve a pessoa malhada aos hormônios da felicidade em poucos dias.

Não faltou propaganda também para os benefícios da proteína do soro de leite, alvo de fake news, segundo eles, que relacionam o suplemento a problemas cardíacos.

Por meio de imagens projetadas em um painel, Bolsonaro foi apresentado a competidores de corpos avantajados que estavam esbanjando saúde e fazendo bonito em torneios internacionais. Por alguma razão, aparentemente modulada pelo espírito da quinta série, o entrevistado parecia conter aquele sorriso que prenuncia a elaboração de uma piada. Se houve, ela foi abortada por uma crise de tosse quando ele se deparou com um dos atletas de corpo torneado.

Ele voltaria a fazer a mesma cara ao ouvir, com um notável interesse fingido, o médico do podcast falar sobre o problema da sarcopenia, como é conhecida a perda de massa muscular conforme a pessoa envelhece.

Pedro Cardoso definiu Jair Bolsonaro, certa vez, como um homem iludido da própria virilidade.

Talvez tenha sido essa alta projeção de si que vez o presidente imaginar que falaria de igual para igual, ombro a ombro, com os anfitriões trabalhados na musculatura.

Como já havia feito na pandemia, Bolsonaro se gabou de seu histórico de atleta para atravessar todas as barreiras sanitárias, gastronômicas e até ortopédicas que a vida já lhe impôs. Ele lembrou quando se acidentou, em seus tempos de Exército, ao perder o controle do paraquedas e cair de uma altura de oito metros na avenida das Américas, no Rio, durante os anos 1980.

E atribuiu à boa forma a sorte de estar vivo, a essa altura, após o atentado a faca sofrido em um ato de campanha em 2018, em Juiz de Fora (MG). O atentado, segundo o presidente, não lhe tirou apenas fisicamente da campanha; tirou dele também a barriga tanquinho que dizia ostentar até passar por uma série de cirurgias.

Bolsonaro falou sobre seu desempenho em provas de corrida do Exército e se emocionou, saudoso dos tempos da juventude, quando era chamado de Cavalão, ao ver imagens de suas participações em jogos militares.

"Me realizei no esporte como militar. E nas peladas de fim de semana. Isso mexe com a carcaça da gente", disse o presidente.

A versão mais atualizada da carcaça foi exposta em um vídeo conhecido em que o presidente tenta fazer flexões ao lado de João Doria (PSDB). Foi quando Cariani o acusou de "roubo": aquilo, afinal, não eram flexões.

Bolsonaro e Doria fazem flexões em inauguração de CT paraolímpico

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Mais sério, Muzy quis saber do presidente por que não existem programas de residência médica suficientes para acolher profissionais que se formam. O presidente não soube o que dizer, mas pediu para que seu ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, fosse acionado para responder ao vivo, por telefone, à questão. Foi o que aconteceu.

O entrevistado quis saber também se o presidente se comprometia a tornar obrigatórias as aulas de educação física nas escolas brasileiras, mas saiu pela tangente dizendo que não podia fazer qualquer promessa que esbarrasse nas contingências orçamentárias do serviço público.

Verdade seja dita: ninguém, em nenhuma das entrevistas concedidas pelo presidente ao longo da semana, foi tão incisivo em seu questionamento sobre o problema da fome no Brasil quanto Muzy. A preocupação era com os fisiculturistas e também com a juventude que precisavam de uma alta ingestão de proteína, como ovo, carne, peixe e whey protein, para potencializar seus desempenhos em cada tempo da vida.

O problema não era a pergunta, mas o entrevistado, que atribuiu a alta da inflação ao livre mercado, colocou em dúvida os índices de famintos no país, e disse que em sua gestão os pedintes já não mendigavam por pão em frente às padarias. Faltou dizer qual padaria ele anda frequentando em Brasília.

Antes de encerrar, Cariani fez um discurso dizendo como era importante cuidar do próprio corpo e poder bater bola e andar de bicicleta com os filhos e netos. "A gente veio trazer essa consciência para o senhor sobre a importância da prática da atividade física", disse o apresentador.

"Tá anotado", disse mais de uma vez o capitão-aluno.

Ao fim, Cariani fez um duro discurso contra todos os que o xingaram e abandonaram seu canal após o anúncio da entrevista com Bolsonaro. A ideia da live era apenas, segundo ele, dividir com o chefe de Estado a percepção de dois profissionais top da área da saúde sobre longevidade e vida saudável. "A gente cuida das pessoas há muito tempo. Então a gente entende de saúde".

Era uma resposta a todos os que o acusaram de dar palanque a um presidente em plena campanha à reeleição.

Em seguida abriu o microfone para Bolsonaro fazer suas considerações finais. O candidato olhou então para a câmara e disse que todos somos responsáveis em nossas decisões, até no casamento. Parecia uma ameaça.

Sem citar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), disse que não havia nada neste país que não podia piorar. Repetiu então toda a ladainha que já tem dito e repetido em sua campanha. Parecia um palanque. E era.