Marçal busca voto periférico na base do estereótipo e do preconceito

Pablo Marçal parece ter percebido que, se quiser ser eleito prefeito de São Paulo, não basta conquistar só a simpatia da Faria Lima. Vai ter que sair de Alphaville, bairro de condomínios de luxo em Barueri, onde mora e trabalha, e conquistar os votos da periferia da metrópole.

Não é por outra razão que ele lançou uma piscadela a esses eleitores durante o Roda Viva, da TV Cultura, na segunda-feira (2). Ali, bateu no peito para dizer que vinha da quebrada em Goiânia. Para provar o que dizia, cantou até o hino "Diário de um Detento", dos Racionais MC's.

"É o único rap que ele sabe cantar", me disse, aos risos, uma pessoa que já trabalhou com o candidato.

Teve quem acreditou, mas, no dia seguinte, Marçal postou em suas redes sociais um vídeo em que flerta com o racismo mais descarado.

A peça era mais ou menos assim: no bar de uma rua periférica, um grupo de mais ou menos dez pessoas, quase todas negras, conversa e bebe cerveja em torno de uma mesa de plástico improvisada.

Do nada, chega uma mão carregando uma carteira de trabalho. E todo mundo sai correndo, assustado.

A legenda é resumida apenas como um "kkkkkk", mas a mensagem é implícita: Marçal ou o responsável pelas redes dele acredita que as pessoas na favela não gostam de trabalhar ou não trabalham porque não querem.

Na sabatina que ele concedeu ao UOL e à Folha de S.Paulo, nesta quarta-feira (4), ele voltou a demonstrar o que pensa a população periférica da cidade. Ao responder a uma pergunta sobre educação, propôs ensinar profissões do futuro para garotos da periferia e dar a eles um sonho que, hoje, se concentra em praticamente três caminhos: o futebol, o hip hop e o crime.

Continua após a publicidade

Marçal resumiu os três "sonhos" dominantes na favela como caminhos para a prosperidade. E promete oferecer rotas alternativas com um projeto genérico sobre educação financeira.

Com essas ferramentas individuais, afirma, as pessoas na quebrada não ficariam dependentes do Estado.

De fato, deve ser por falta de educação financeira que os gestores da Americanas provocaram um rombo contábil de quase R$ 20 bilhões no caixa da empresa.

Ou que o plano de recuperação judicial da companhia tenha deixado os gestores iletrados em finanças tão dependentes de um acordo com os bancos públicos — o Estado, no caso.

Criança que sonha em ser atleta ou artista não é monopólio dos meninos da quebrada. As vias até o crime, menos ainda — aparentemente a infância deu outras oportunidades aos executivos bem nascidos que provocaram o maior rombo financeiro da história do país.

As periferias de São Paulo, como acontece em outras metrópoles, enfrentam desafios diversos em razão do abandono histórico. Mas são também ambientes pulsantes compostos por festivais literários, interesse por inovação, redes conectadas e um espírito empreendedor que só quem já passou por lá conhece.

Continua após a publicidade

Segundo um estudo divulgado em 2023, 35% dos mais de 2.423 moradores de favelas entrevistados pelo Instituto Locomotiva sonham em ter um negócio próprio; 12%, passar em um concurso; 10%, conseguir um emprego; 9%, ter uma profissão; 6%, serem promovidos.

Pablo Marçal transformou a carteira de trabalho em um símbolo para atacar adversários e grupos sociais periféricos, mas não consegue responder por que a informalidade prevalece entre os colaboradores de suas empresas.

Um deles tinha 26 anos e um futuro pela frente quando foi convocado pelos superiores a participar de uma maratona (sim, maratona, 42 quilômetros) ao fim do expediente. Sem carteira assinada, ganhava pouco, trabalhava muito, e nos intervalos produzia vídeos a mando da chefia para provar a tese de que mentalidade vencedora leva a qualquer lugar.

Ele morreu no quilômetro 15 de infarto por esforço excessivo.

O chefe dele quer dizer agora como os jovens da periferia devem sonhar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes