Cidade visitada por Bolsonaro tem 'ar insuportável' por causa de queimadas: 'A gente reza pra chover'
Desde o último domingo, os moradores da cidade de Sorriso, em Mato Grosso, veem o sol se pôr alaranjado, sem brilho.
A nuvem de fumaça que recobre o município no norte do Estado dificulta a respiração. Muita gente se queixa de dor de cabeça e de uma sensação de sufocamento.
O "ar sujo" das queimadas entre os meses de agosto e outubro é um velho conhecido de quem mora no "nortão", como é chamado na região o norte de Mato Grosso, uma área de transição entre os biomas do Cerrado e da Amazônia.
Em 16 anos vivendo no município, entretanto, o geógrafo Weriton Queiros, de 28 anos, diz que nunca viu nada parecido.
Os últimos dias foram particularmente difíceis. Sem ar condicionado, ele a mãe geralmente enfrentam o calor de 40°C que costuma fazer em Sorriso nesta época do ano com as janelas abertas.
No sábado (12/9), entretanto, a nuvem densa que baixou sobre a cidade os obrigou a fechar a casa.
"A sensação era de sufocamento", conta.
Acordou com dor de cabeça no domingo e se surpreendeu quando, pouco depois das 17h, olhou pela janela e percebeu que o sol ainda não tinha descido.
"Estava tão escuro que eu achei que já passasse das seis da tarde", conta. "O sol tava alto no céu e não tinha brilho. Dava pra olhar sem 'manchar' a vista."
Na terça-feira, com a situação ainda pior, o tempo monopolizava as conversas de WhatsApp em Sorriso. Na troca de mensagens, Queiros e alguns amigos chegaram a conjecturar que o município estivesse no meio de uma confluência entre a fumaça que vem das queimadas do Pantanal, ao sul, e da Amazônia, ao norte.
"A gente reza pra chover. Não resolve, mas alivia", diz ele.
A previsão meteorológica promete precipitação para esta segunda, após meses sem chuva.
O presidente Jair Bolsonaro chegou a experimentar um pouco do que os moradores da cidade têm vivido nesta sexta (18/9). Ele visitou Sorriso, considerada uma das capitais do agronegócio no país, para fazer o lançamento do plantio da próxima safra de soja.
A fumaça das queimadas era tanta que seu avião teve de arremeter na primeira tentativa de pouso na vizinha Sinop, por conta da baixa visibilidade.
A pedido da BBC News Brasil, o chefe do Laboratório de Ciências da Biosfera da Nasa, Douglas Morton, analisou as imagens do satélite meteorológico GOES e verificou que as plumas de fumaça que chegaram à região na quarta-feira vieram principalmente do norte, de incêndios na área de Novo Progresso, no Pará.
Mais para o fim do dia, ela também recebeu "grandes plumas de fumaça" lançadas em níveis mais altos da atmosfera vindas da região do Xingu, no nordeste do Estado. A agência espacial americana tem acompanhado de perto os dados sobre as queimadas, disponibilizados em uma página com versão em português.
"As maiores queimadas no sub-bosque em toda a Amazônia neste momento estão na bacia do Xingu em Mato Grosso", afirma Morton.
O professor do Instituto de Física da USP Paulo Artaxo, membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), afirma que não é impossível que, em algum momento, Sorriso, que está no caminho da corrente de ar que vem da Amazônia, também seja afetada pela fumaça das queimadas no Pantanal.
As imagens da Nasa desta quinta (17/9), ressalta o pesquisador, mostravam 60% do território brasileiro coberto por fumaça.
'Ar insuportável'
A fumaça que vem da queimadas carrega uma série de poluentes: monóxido de carbono, dióxido de nitrogênio, carbono negro, entre outros. Uma das principais ameaças à saúde pública é o material particulado com menos de 2,5 micrômetros de diâmetro, conhecido como PM 2,5.
Quando inalado, ele penetra com facilidade no pulmão e entra na corrente sanguínea, permanecendo no corpo por meses após a exposição.
Assim, o avanço das queimadas leva a um aumento dos problemas respiratórios entre as populações que estão no caminho das plumas e ao crescimento do número de internações hospitalares, sobrecarregando o sistema de saúde.
É o que mostra um estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e pelo Human Rights Watch (HRW) com dados referentes às queimadas de 2019 no bioma Amazônia.
O levantamento estima que pelo menos 2.195 internações por problemas respiratórios podem ser diretamente associadas aos incêndios, sendo 21% de bebês de até um ano e 49% de pessoas com mais de 60 anos.
"E isso é uma pequena parcela (do total provável). Quem consegue se hospitalizar na Amazônia por conta de doença respiratória é uma parcela mínima", diz Ane Alencar, diretora de ciência do IPAM.
Segundo ela, o ar nessa região nessa época do ano "fica insuportável", tão ruim ou pior do que nas cidades mais poluídas do mundo, como em Nova Déli, na Índia.
Em uma comparação para fins didáticos, é algo como passar a noite em uma casa noturna na época em que era permitido fumar em ambientes fechados. "No outro dia, você acorda com dor de cabeça."
Em um momento de como o atual, com uma pandemia causada por um vírus que ataca o sistema respiratório, as populações dessas regiões ficam ainda mais vulneráveis.
O professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), estimou, com base em imagens de satélite, a concentração de PM 2,5 na área do município de Sorriso nos últimos dias.
Na quarta feira, ela estava em 46 microgramas por metro cúbico — mais de quatro vezes maior do que o limite máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), 10 ?g/m3.
Barbosa explica que o material particulado pode ter muita influência do contexto local — em grandes centros urbanos com muito tráfego de veículos, por exemplo, a concentração tende a ser maior. Mas os valores verificados na região, ele pondera, estão diretamente ligados às queimadas, já que se tratam de pequenas e médias cidades.
O meteorologista acrescenta que os efeitos da poluição do ar causado pelas queimadas não estão restritos às áreas mais próximas aos focos. A movimentação das correntes de ar espalha esse material particulado pelo território, especialmente em períodos em que o tempo está mais seco, como agora.
"A mesma corrente que leva chuva da Amazônia para o Centro-Sul carrega esses poluentes", diz ele.
A imagem gerada pelo laboratório com a concentração de material particulado em diferentes regiões do país nesta quinta deixa isso claro:
"A questão da qualidade do ar está diretamente ligada à qualidade dos biomas."
'É a nossa Cubatão'
Alencar, do IPAM, ressalta que o efeito das queimadas sobre a saúde da população na Amazônia deveria ser uma questão de saúde pública, apesar de não vir sendo tratada como tal.
Ela traça um paralelo com a cidade de Cubatão, em São Paulo, que mobilizou recursos e atenção do setor público nos anos 80, quando chegou a ser uma das cidades com maior nível de poluição atmosférica do mundo.
"É a nossa Cubatão. O ar que a gente respira é muito aquém do que a OMS indica como 'respirável'."
O país não consegue, contudo, nem medir adequadamente os níveis de poluição atmosférica nessas áreas.
No estudo divulgado no fim de agosto, o IPAM e as demais entidades destacam que o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) editou, três décadas atrás, uma resolução que previa uma rede de monitoramento da qualidade do ar — e que até hoje não foi implementada adequadamente.
Apenas 12 dos 27 Estados realizam algum tipo de monitoramento da qualidade do ar, nenhum deles na região amazônica.
No ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, chegou a anunciar um plano para criar uma rede nacional de monitoramento da qualidade do ar, com pelo menos uma estação em cada Estado.
À Human Rights Watch, a pasta respondeu, em julho, que estava conduzindo o processo de licitação para que Estados que ainda não monitoram níveis de material particulado fino (PM 10 e PM 2,5) possam começar a fazê-lo, mas não mencionou o monitoramento de outros poluentes.
Além das iniciativas de mitigação, os especialistas ouvidos pela reportagem ressaltam a importância das ações para coibir os avanços das queimadas, que são a raiz do problema.
Alencar explica que o tempo seco (e o Pantanal vive sua pior seca em 60 anos) contribuem para alastrar e potencializar os incêndios. O fogo precisa, entretanto, de ignição — e são raras no Pantanal e na Amazônia as queimadas geradas de forma espontânea, pela ação de raios durante tempestades, por exemplo.
A grande maioria dos focos é causada pelo próprio homem.
"E (a solução) não é só fiscalizar, não é só ter um decreto que coloque uma moratória do fogo, mas incentivar que não aconteça", pondera Alencar. "E o que a gente tem visto é o contrário", completa, referindo-se ao discurso do governo, que muitas vezes nega que haja um problema a ser enfrentado.
"O pior é que a gente já sabia. O INPE e a Nasa já apontavam para um ano possivelmente mais seco nessa região. A gente deveria ter trabalhado de forma preventiva."
Barbosa, meteorologista do Lapis/UFAL, diz que a chuva esperada ansiosamente para o início da semana em Sorriso deve chegar, depois do que se desenha como um fim de semana "bem difícil".
A precipitação estará longe, contudo, de resolver os problemas. Os dados apontam um fim de setembro e início de outubro de mais secura e calor.
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