Topo

Esse conteúdo é antigo

Os crocodilos que atacam cada vez mais humanos por seca em habitat natural

Siahouk foi atacado por um crocodilo na região do Baluchistão, que vem enfrentando graves secas em seus rios - BBC
Siahouk foi atacado por um crocodilo na região do Baluchistão, que vem enfrentando graves secas em seus rios Imagem: BBC

BBC News

28/12/2021 13h08

Deitado no chão de sua modesta casa, Siahouk sentia uma dor terrível devido ao ferimento na mão direita, resultado de um encontro que poderia ser descrito como um pesadelo.

Dois dias antes, em uma tarde de calor escaldante de agosto, o frágil pastor de 70 anos foi buscar água em um lago quando foi atacado por um gando, o nome local dado ao crocodilo-persa na região do Baluchistão, no Irã.

"Eu não esperava", relembra Siahouk sobre o evento traumático de dois anos atrás, com o choque e a incredulidade ainda presentes em seus olhos.

Só conseguiu escapar quando "apertou uma garrafa de plástico [de água] entre as mandíbulas", diz Siahouk, revivendo o momento enquanto esfrega o rosto magro com a mão esquerda enrugada.

A perda de sangue o deixou inconsciente por meia hora. Ele só foi encontrado depois que seu rebanho de ovelhas voltou desacompanhado para sua pequena aldeia de Dombak.

Uma coexistência letal

O relato de Siahouk é um entre o de muitas outras vítimas, a maioria delas crianças. Na maioria das vezes, manchetes sensacionalistas sobre crianças do Baluchistão sofrendo de ferimentos terríveis inundam a mídia iraniana, mas essas histórias desaparecem rapidamente.

Em 2016, uma criança de nove anos chamada Alireza foi engolida por um desses crocodilos. E em julho de 2019, Hawa, 10, perdeu o braço direito em um ataque. Pegando água para lavar a roupa suja, ela quase foi arrastada pelo crocodilo antes de ser salva por outras pessoas numa espécie de cabo de guerra.

Crocodilo-persa avistado no rio Bahu-Kalat - BBC - BBC
Crocodilo-persa avistado no rio Bahu-Kalat
Imagem: BBC

Os ataques aconteceram em um momento em que o Irã está sofrendo de escassez aguda de água e, consequentemente, os habitats naturais dos crocodilos sob redução acelerada fizeram com que o suprimento de alimentos dos gandos sumisse.

Assim, os animais famintos tratam os humanos que se aproximam de seu território como presa ou uma ameaça aos seus recursos escassos.

Espalhados pelo Irã e pelo Sudeste Asiático, os gandos são crocodilos de focinho largo, classificados como "vulneráveis" pela IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza).

O Irã tem cerca de 400 espécimes, compreendendo quase 5% do total. O Departamento de Meio Ambiente do Irã diz que está fazendo o possível para encontrar um equilíbrio entre a preservação dos gandos e a proteção da população local.

Apesar de todas as tragédias causadas pela seca nos últimos anos, há poucos sinais de que a promessa esteja sendo cumprida. Viajando ao longo do rio Bahu-Kalat, o principal habitat dos gandos no Irã, quase não há nenhuma sinalização alertando sobre o perigo.

Na ausência de uma estratégia governamental adequada, voluntários intervieram para tentar salvar a espécie matando a sede e saciando a fome.

Em Bahu-Kalat, um vilarejo com o nome do rio, subindo a estrada de terra de Dombak, me sento com Malek-Dinar, que convive com gandos há anos.

"Eu matei meu jardim para armazenar água para essas criaturas", diz ele sobre sua terra antes abundante em bananas, limões e mangas.

O rio nas proximidades é o lar de alguns daqueles crocodilos que ele regularmente alimenta com peitos de frango, porque "esse calor devastador tornou escassas rãs e outras presas típicas".

"Vamos, venha aqui", diz Malek-Dinar repetidamente aos crocodilos, enquanto me pede para manter uma distância segura. Em um piscar de olhos, dois aparecem, esperando para serem alimentados com sua ração de frango guardada em um balde branco.

'Quem pode sobreviver sem água?'

A escassez de água no Irã não é exclusiva do Baluchistão. Protestos mortais eclodiram na província do Khuzistão, rica em petróleo, no sudoeste do país, em julho.

E no final de novembro, a tropa de choque na cidade central de Isfahan disparou contra manifestantes reunidos no leito seco do rio Zayandeh-Roud.

Com o aquecimento global já mostrando seu grave impacto no Irã, as implicações para o Baluchistão podem ser catastróficas quando associadas a décadas de má gestão da água.

Depois de estacionar em Shir-Mohammad Bazar para se proteger de uma tempestade de areia, encontrei mulheres lavando roupa a céu aberto.

"Há infraestrutura de encanamento, mas não há água encanada", disse Malek-Naz, de 35 anos. Seu marido, Osman, ri da minha pergunta sobre chuveiros, apontando para a cena na porta ao lado: uma mulher dando banho em seu filho em uma vasilha de água salgada.

Osman, pai de cinco filhos, e seu primo, Noushervan, que entra na conversa, ganham a vida transportando gasolina para o vizinho Paquistão, onde pode ser vendida por um valor superior ao que se cobra em seu país.

"Os riscos são enormes", admite Noushervan, em tom desafiador. Em fevereiro, guardas da fronteira do Irã abriram fogo contra um grupo de supostos "contrabandistas de combustível", matando pelo menos 10 pessoas. Essas repressões são comuns em áreas sensíveis de fronteira.

"Eles estão deliberadamente fechando os olhos para nossa angústia. Acredite em mim, não somos inimigos do Estado", disse Osman, reclamando do que ele e muitos desiludidos Baluchis descrevem como "negligência sistemática" da comunidade.

Ainda assim, para ele e incontáveis mais Baluchis, o desemprego é bem menos desafiador do que a escassez de água que tornou até mesmo os crocodilos — as criaturas "bem-aventuradas" com as quais coexistiram pacificamente — contra eles.

"Não esperamos nenhuma ajuda do governo. Não esperamos que eles arrumem empregos para nós", disse Noushervan. "Nós, Baluchis, podemos sobreviver com pães no deserto. Mas a água é a essência da vida. Não sobreviveremos sem ela. Mas quem sobreviverá?"