Os desafios do setor industrial responsável por um terço do lixo mundial
Todos os anos, nós esmagamos, puxamos e retiramos cerca de 100 bilhões de toneladas de matéria-prima do tecido do planeta. Essa quantidade equivale a destruir dois terços da massa do Monte Everest a cada 12 meses.
Cerca de metade da matéria-prima que extraímos vai para a indústria da construção, que gera cerca de um terço de todos os resíduos do planeta e pelo menos 40% das emissões mundiais de dióxido de carbono. Compare esse número com os 2-3% causados pela aviação, que causa muito mais perturbação entre as pessoas.
Os "resíduos" do consumo dessas matérias-primas são descartados em quantidades tão imensas que a sua pegada ambiental ajudou a criar uma nova era, que recebeu o nome de "Antropoceno".
Os arqueólogos do futuro irão cavar por entre camadas de entulho para entender como vivemos.
Mas esse material que usamos e descartamos hoje em dia também contém um enorme tesouro que poderá ser utilizado em nosso benefício.
Calcula-se que uma tonelada de telefones celulares contenha 300 vezes mais ouro que uma tonelada de minério de ouro da melhor qualidade, além de quantidades significativas de prata, platina, paládio e metais raros - enquanto seguimos rasgando a terra com a mineração contínua para conseguir mais desses materiais.
As vastas quantidades de cobre disponíveis em bilhões de cabos existentes em todo o mundo são uma fonte reutilizável de metal com uma taxa de concentração bem mais elevada do que os menos de 1% existentes em minérios de qualidade superior.
Tudo isso gera uma questão óbvia: por que não reutilizamos o que já extraímos, em vez de escavar o planeta em busca de cada vez mais matérias-primas?
Esse pensamento vem estimulando um grupo cada vez maior de arquitetos e empresas de construção a examinar como reutilizar a imensa quantidade de materiais ocultos nos ambientes que já construímos, desde concreto e madeira até riquezas metálicas do lixo eletrônico.
Em 2005, o escritório de arquitetura Superuse, com sede em Roterdã, na Holanda, estabeleceu um marco inovador para uma nova visão da construção civil ao criar a Villa Welpeloo - a primeira casa contemporânea do mundo feita principalmente com resíduos de materiais de construção.
Aço de máquinas têxteis antigas e madeira de bobinas de cabos industriais danificadas compõem 60% dos materiais de segunda mão empregados na construção.
Posteriormente, em 2013, o arquiteto britânico Duncan Baker-Brown ultrapassou a Superuse ao utilizar mais de 90% de materiais residuais para construir a Casa de Resíduos de Brighton, na Inglaterra.
Baker-Brown combinou vários materiais diferentes, desde brim usado até estojos plásticos de DVD e escovas de dente descartadas, para compor o isolamento das paredes, além de câmaras de ar de pneus de bicicletas antigas para isolar o piso contra som e impactos.
Cerca de 10 toneladas de solo calcário destinado a aterros foram recolhidas para criar paredes de terra prensada e as placas de carpete usadas de um escritório forneceram o revestimento externo.
"A casa de resíduos é um projeto de pesquisa 'vivo' que faz com que as pessoas pensem na origem desses materiais e onde eles terminam", afirma Baker-Brown.
Ele construiu um modelo de uma nova forma de construção com o mínimo de resíduos no seu livro The Re-Use Atlas ("Atlas do reúso", em tradução livre), de 2017, que ensina seus princípios para uma geração crescente de arquitetos e construtores da faculdade de arquitetura da Universidade de Brighton.
Ele oferece uma redefinição simples e poderosa dos resíduos como sendo "apenas coisas úteis no lugar errado".
Embora essas ideias sejam incluídas no setor de "economia circular", Baker-Brown utiliza uma expressão com maior impacto: ele ressalta a necessidade de "minerar o Antropoceno" em vez de cavar novos materiais.
"Precisamos nos tornar 'mineradores urbanos' e retrabalhar [ou] reutilizar construções, componentes e fontes de materiais já disponíveis", escreveu ele em uma chamada para ação mobilizadora publicada na revista do Instituto Real de Arquitetos Britânicos em 2019.
Baker-Brown está atualmente terminando um pavilhão para a Ópera de Glyndebourne em Sussex, no Reino Unido, que é conhecida mundialmente.
O pavilhão está sendo construído com produtos residuais que incluem cascas de ostras, rolhas de champanhe e tijolos mal cozidos rejeitados de uma fábrica de tijolos próxima.
Fundamentalmente, ele também está empregando esses materiais de forma que facilite sua desconstrução posterior - unindo os elementos com pregos em vez de cola, por exemplo - para criar o que ele chama de "uma loja de materiais para o futuro".
A ideia de projetar construções especificamente com o reúso em mente ganhou o rótulo "design para desconstrução".
Os Jogos Olímpicos de 2012 mostraram essas ideias em ação com a construção de acomodações temporárias para 17 mil atletas em Londres.
Para isso, as construções foram projetadas de forma que pudessem ser remodeladas posteriormente na forma de casas sustentáveis para habitantes locais, graças a elementos como paredes divisórias nos andares, que podem ser movidas facilmente para formar novas configurações.
Mas as pessoas dispostas a minerar o Antropoceno precisam trabalhar principalmente com construções existentes que não foram projetadas para desconstrução ou reconstrução.
O escritório holandês Maurer United Architects respondeu a esse desafio construindo 125 novas moradias sociais com mais de 90% de materiais reciclados de blocos de apartamentos antigos no empreendimento Superlocal Estate, na cidade de Kerkrade, na Holanda.
Trechos enormes de piso de concreto foram cortados e erguidos dos antigos edifícios e depositados para fornecer as estruturas das casas novas, enquanto o concreto restante foi triturado no local para reúso, em uma abordagem que o fundador do escritório, Mark Maurer, chama de "demolição inteligente".
Uma chave para a mineração bem sucedida do Antropoceno para nossas construções futuras é elaborar maneiras de reutilizar os materiais existentes em uma infinidade de formas.
Folke Köbberling, professora de arte relacionada à arquitetura da Universidade Técnica de Braunschweig, na Alemanha, passou anos aperfeiçoando formas de reutilizar materiais.
"Usar material reciclado é diferente de trabalhar com materiais novos", afirma ela. "Esses materiais têm uma história. Nós buscamos os materiais e tentamos utilizá-los como eles chegam, de forma muito flexível."
Um exemplo é o anfiteatro que ela e seu colega Martin Kaltwasser construíram em 2008 no Centro de Artes Wysing, perto de Cambridge, no Reino Unido.
Feito principalmente com 400 pallets de madeira recuperados de construções locais, ele também inclui janelas de antigas estufas e pisos de madeira de teca reciclados de prateleiras descartadas pela Universidade de Cambridge.
Com custo total de apenas 5 mil euros (R$ 30,7 mil), a construção foi idealizada para fornecer um espaço diferenciado para as artes por dois anos, até ser desmontado para reutilizar seus materiais em outro lugar. Mas ele ainda está servindo muito bem.
Köbberling também descobriu que lã de carneiro bruta descartada serve de excelente filtro de poluição e isolamento das paredes e transformou ainda milhares de garrafas e copos plásticos descartados na Maratona de Berlim em material para tetos de pontos de ônibus.
Conectar a fonte desses materiais à demanda por componentes é um elemento chave no esforço para reinventar os resíduos como novo material de construção.
"Precisamos encontrar uma forma de criar prosperidade e valor agregado, não pela produção de novas mercadorias, mas com a manutenção e gestão das mercadorias existentes", afirma Michael Ghyoot, cofundador da empresa de design Rotor, com sede em Bruxelas, na Bélgica - que está concentrando esforços para facilitar o reúso pelos profissionais da construção.
A Rotor associou-se a outras empresas da Europa em um projeto financiado pela União Europeia para formar um diretório online que já reuniu pouco mais de 1 mil comerciantes especializados na recuperação de materiais e empresas correlatas (a pandemia prejudicou o objetivo original de reunir 1,5 mil participantes).
Ela também está criando um kit de ferramentas pré-demolição para ajudar as empresas a determinar o potencial de reúso de materiais e produtos presentes em construções previstas para demolição ou revitalização.
A remodelagem da Torre de Montparnasse, com 59 andares, pelo escritório de arquitetura Bellastock, com sede em Paris, na França, é outro exemplo da mineração do Antropoceno em ação.
Os arquitetos utilizaram concreto, vidro e aço da fachada e do interior da construção para ajudar a criar novos níveis e espaços, sem recorrer a resíduos de demolição.
A torre transformada está programada para ficar pronta a tempo para receber visitantes nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024.
Mathilde Billet, diretora técnica de reúso da Bellastock e gerente de projetos da des/reconstrução da Torre de Montparnasse, argumenta que comportamentos arraigados no setor da construção, e não barreiras práticas, são o principal obstáculo para a implementação generalizada do princípio de reúso.
"O mais difícil é mudar nossa forma de pensar", afirma ela, acrescentando que o aumento da consciência, treinamento, conferências e simplesmente falar podem remover grande parte desse medo de mudança.
"Precisamos imaginar a cidade como um banco de materiais, propício para o reúso. Não existem mudanças significativas. Custa apenas um pouco de vontade e agilidade", ela diz.
Michael Ghyoot também salienta que o processo de tornar os materiais existentes prontos para reúso cria uma série de novos empregos.
"Essa atividade é trabalhosa: [exige ações como] limpar as pontas de uma laje de mármore, remover cimento de telhas, substituir os fios de aparelhos elétricos antigos - e documentar todos os materiais", segundo ele.
Para Mathilde Billet, os princípios que sustentam a mineração do Antropoceno também se harmonizam com as práticas antigas, seja o reúso de pedras de construções antigas, que foi algo comum por séculos, ou a reconstrução constante de grandes construções de argila, em países como o Máli.
"O reúso exige tecnologia antiga", afirma ela. "Essa tecnologia existe em quase todos os lugares do planeta, mas está morrendo lentamente." A situação alarmante em que nos encontramos significa que precisamos retornar para uma arquitetura mais frugal, segundo ela: "uma arquitetura construída com o material do local onde ela se encontra".
Longe de ser algo totalmente oposto à economia prática, uma análise de cinco países da União Europeia pelo Clube de Roma em 2020 concluiu que mudar para uma economia mais circular reduziria suas emissões de carbono em dois terços e criaria mais de um milhão de novos empregos.
O que realmente faz pouco sentido econômico ou ambiental é continuar a escavar bilhões de toneladas de matérias-primas novas do planeta.
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