MP de Bolsonaro dá 'superpoderes' para Salles gerir multas do Ibama
Resumo da notícia
- MP de Bolsonaro autoriza contratação, sem licitação, de instituição financeira para gerir multas do Ibama
- Aplicação dos recursos será determinada por exclusivamente por "ato do ministro do Meio Ambiente"
- Ambientalistas temem que fundo seja utilizado para fins alheios à preservação e recuperação ambiental
Em meados de outubro, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinou uma Medida Provisória que alterou a política de conversão de multas ambientais. O texto autoriza o Ministério do Meio Ambiente a contratar, sem licitação, uma instituição financeira para gerir um fundo que receberá os valores das multas convertidas indiretamente —quando o infrator aloca o dinheiro em um serviço de preservação para quitar sua dívida com o Estado.
Até a posse do atual governo, os serviços nos quais as empresas poderiam alocar seu dinheiro proveniente das multas convertidas eram escolhidos pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) por meio de chamamento público.
Com a mudança promovida pelo Executivo, a decisão ficará concentrada no ministro Ricardo Salles, que vai determinar a "destinação dos recursos e as definições quanto aos serviços prestados".
Dessa forma, Salles terá uma espécie de "superpoder" sobre um fundo que tem um ativo potencial de pelo menos R$ 38 bilhões (o Ibama não retornou os questionamentos da reportagem sobre valores atualizados), valor de multas que o Ibama ainda tem para receber aventado pela ex-presidente do instituto Suely Araújo, que deixou o posto no segundo dia do governo Bolsonaro.
O site The Intercept reportou no final de outubro que este número pode chegar a R$ 54 bilhões, conforme análise da plataforma InfoAmazonia.
"Meu principal receio é que, como agora está tudo no prato do ministro, exista risco de uma grande politização das decisões. É muito dinheiro. O Ibama arrecada, em média, R$ 3 bilhões por ano em multas", diz Araújo ao UOL.
Você não pode dar um cheque em branco para qualquer um que seja ministro, é muito recurso
Suely Araújo, ex-presidente do Ibama
Segundo ela, os contratos para prestações de serviços ambientais já estavam firmados para este ano, mas o governo não assinou os termos de parceria e suspendeu o que já havia sido negociado. Pelo menos R$ 1,1 bilhão em multas já tinha destino certo, mas não houve continuidade. "Esses projetos estão no limbo", afirma a ex-presidente do Ibama.
Pela norma anterior, os valores provenientes das multas convertidas não se tornavam públicos em nenhum momento do processo. As empresas depositavam o dinheiro em uma conta da Caixa Econômica Federal, vinculada à instituição que prestaria o serviço ambiental, e acompanhavam toda a realização desse serviço. A dívida só era sanada quando o trabalho era concluído.
Com a MP, não se sabe como o dinheiro será investido, já que a aplicação de recursos será determinada por "ato do ministro do Meio Ambiente".
A Medida Provisória assinada por Bolsonaro e Salles desobriga as empresas de acompanharem a realização dos serviços ambientais e "desonera" quem foi multado de qualquer responsabilidade com o depósito do valor no fundo privado. "Monitorar faz parte do espírito da conversão. Você estava substituindo uma obrigação de pagar por uma obrigação de fazer. Agora, você está substituindo uma obrigação de pagar por uma obrigação de pagar com desconto, é um retrocesso", diz Araújo.
Como funcionava e como vai funcionar
A conversão de multas, que pode ser direta (quando o infrator paga por um serviço ambiental) ou indireta (o infrator deposita o valor em uma conta bancária para que outra instituição, em geral organizações não governamentais, realize o serviço) é prevista na lei brasileira desde 1998.
Uma regulamentação concreta da norma, entretanto, veio apenas com a gestão do ministro José Sarney Filho (PV) em 2017, sob o governo de Michel Temer (MDB).
O decreto que regimentou as conversões diretas e indiretas das multas foi produto de uma discussão que envolveu ambientalistas e os principais órgãos do ministério do Meio Ambiente, como o Ibama e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Há um consenso entre os estudiosos de que a cobrança da multa sem oferecer a possibilidade de conversão fomenta a inadimplência, já que os infratores preferem postergar o processo ao máximo, levando-o a todas as instâncias administrativas. Com a conversão, é interessante financeiramente para as empresas pagarem, porque há um desconto de 60% na multa.
Em abril, no entanto, um decreto de Bolsonaro já preconizava as mudanças na conversão de multas e foi o embrião da MP que concentrou os poderes nas mãos de Ricardo Salles.
Uma alteração específica chamou a atenção de ambientalistas e estudiosos: a supressão do termo "sem fins lucrativos" do artigo que aponta quais instituições poderiam apresentar projetos para os chamamentos públicos do Ibama.
Com isso, há a possibilidade de que uma empresa privada obtenha lucros com a realização desses serviços ambientais decorrentes das conversões de multas.
No planejamento bianual traçado pela gestão passada do Ibama, dois temas foram escolhidos como prioritários para que instituições apresentassem projetos de serviço ambiental: as recuperações das bacias dos rios São Francisco e Parnaíba.
A seleção dos temas era realizada pela Câmara Consultiva Nacional de Conversão de Multas do Ibama, que reunia funcionários do instituto, do Ministério do Meio Ambiente, de organizações da sociedade civil separadas por região e representantes do setor empresarial. Já a seleção dos projetos era feita por um grupo técnico que reunia membros do Ibama e de fora do governo.
Sob o atual governo, ainda não houve seleção de temas. Para Suely Araújo, o novo texto abre a possibilidade para que uma empresa de saneamento, por exemplo, assuma um serviço decorrente da conversão de multa e lucre posteriormente com isso. Segundo a ex-presidente do Ibama, em abril deste ano havia 12 mil pedidos de conversão indireta de multas —e que agora estão parados.
"Tenho muito receio da concentração de decisão na mão do ministro e que esse dinheiro seja usado de uma maneira cujo benefício não vá para aquilo que nós pensamos na conversão de multa", diz ao UOL o ex-ministro Sarney Filho, que atualmente é secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal.
"É preciso democratizar esse núcleo de decisão, acredito que o Congresso pode melhorar isso", diz. Assinada no último dia 17, a MP deve ser votada no Legislativo em até 120 dias, caso contrário perde a validade. Se não houver posicionamento dos parlamentares em 45 dias, a MP tranca a pauta na Casa onde foi apresentada até ser votada. Até o momento, senadores e deputados (em sua grande maioria de partidos de esquerda) apresentaram 94 emendas ao texto.
Nova tentativa de Salles
Ambientalistas consultados pela reportagem apontam que a mudança na conversão de multas é um novo capítulo de uma empreitada antiga de Salles. Mesmo antes de ser empossado, ele fazia críticas ao Fundo Amazônia e cogitou utilizar o dinheiro arrecadado para outros fins que não fossem preservação e combate ao desmatamento.
A pretensão de Salles de alterar a forma como o dinheiro do fundo é utilizado —questão semelhante à que permeia agora o fundo de multas do Ibama— gerou uma crise com Alemanha e Noruega, principais doadores e responsáveis por aportes que somam quase R$ 3,4 bilhões no Fundo Amazônia.
Para Márcio Astrini, coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace, Salles faz com as conversões de multas o que tentou, sem sucesso, fazer com o Fundo Amazônia. "Ele tentou tirar a sociedade civil e todo o controle social da eleição dos projetos que estariam aptos para fazer o fundo. O interesse do ministro é gerenciar fundos bilionários para interesses políticos que não sabemos quais são", diz Astrini.
As ingerências do ministro no Fundo Amazônia resultaram em prejuízos milionários. Em julho, o governo alemão decidiu reter uma nova doação de 35 milhões de euros, o equivalente a mais de R$ 151 milhões. Um mês depois a Noruega também congelou um repasse de 300 milhões de coroas norueguesas, o equivalente a R$ 134 milhões.
"Salles tem ojeriza a qualquer controle social e transparência. Toda a tentativa dele foi de mudar a governança para evitar desconcentrar o poder na mão dele, para que ele possa tomar as decisões sozinho", afirma Raul do Valle, diretor de Políticas Públicas do WWF-Brasil (Fundo Mundial da Natureza). A ONG fez parte de um consórcio que reuniu várias organizações e foi selecionado para um projeto de recuperação de cerca de 3 mil hectares na bacia do São Francisco, no âmbito dos chamamentos públicos feitos pelo Ibama e que agora estão suspensos por decisão do governo.
Para Valle, o Congresso vai restringir o impacto da MP apresentada pelo governo. "Essa concentração de poder desse ministro vem de uma lógica de acumular poder na mão do Executivo, e o Legislativo não vai deixar isso acontecer. Concentração de poder leva a desvios", completa.
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