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Rios da Amazônia desafiam autoridades e já somam 142 naufrágios desde 2017

Grupo de busca das vítimas do naufrágio do Anna Karoline no Amapá -  Brazil"s Amapa State Press Office / AFP
Grupo de busca das vítimas do naufrágio do Anna Karoline no Amapá Imagem: Brazil's Amapa State Press Office / AFP

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

07/03/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Desde 2017, 182 pessoas morreram em naufrágios de barco na Amazônia
  • Foram 142 naufrágios nos 16 mil km de rios da região no período
  • Região tem áreas remotas que não têm ligação por estradas, e transporte aéreo é inacessível
  • Ao todo, são 196 terminais hidroviários, com 30 mil embarcações registradas

Pelo menos 182 pessoas morreram em 142 naufrágios de barcos desde 2017 nos 16 mil km de rios na Amazônia. A conclusão é de um levantamento realizado pelo UOL com informações das seis Capitanias dos Portos que fiscalizam a malha hidroviária da Amazônia.

O debate sobre a segurança da navegação e das embarcações na região Norte voltou à tona com o naufrágio, no dia 29 de fevereiro, da embarcação "Anna Karoline 3", no sul do Amapá. O acidente deixou ao menos 32 mortos, segundo dados atualizados na noite de sexta-feira (6).

Além dos naufrágios e mortes, há ainda o problema histórico dos escalpelamentos em pequenas embarcações. Entre 2017 e 2019, foram registrados pela Marinha 13 casos. Na média histórica, 65% dos casos envolvem escalpelamentos envolvem crianças.

Os acidentes ocorrem por conta do eixo da embarcação não ser coberto, em que cabelos longos e não presos enroscam e são violentamente arrancados junto o couro cabeludo.

As viagens na Amazônia ocorrem há séculos por pura necessidade: as áreas mais remotas não têm ligação por estradas. O transporte aéreo, que seria a outra forma, é inacessível à população, que tenta achar embarcações baratas e perigosas.

Um barco pode navegar por dias e noites por rios amazônicos para chegar ao destino, em uma região sem cobertura por sinal de telefonia ou internet e com pouquíssimo policiamento.

Sem quartos suficientes, a dormida ocorre em redes armadas dentro das embarcações.

Uma viagem entre Manaus e Belém, por exemplo, leva cinco dias, numa das rotas mais visadas por assaltantes, ou os "ratos d'água", como são conhecidos na Amazônia. O alvo nem sempre são os passageiros, mas muitas vezes são as cargas ou mesmo o combustível.

Números gigantes

Segundo o último levantamento da UFPA (Universidade Federal do Pará) e Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), de 2017, são 9,7 milhões de passageiros que transitam de barco, com 3,4 milhões de toneladas de cargas levadas.

Ao todo são 196 terminais hidroviários na região, com cerca de 30 mil embarcações registradas.

Segundo Hito Braga, diretor da Faculdade de Engenharia Naval da UFPA, os números não devem corresponder a realidade. "São 9 milhões passageiros por ano que a gente sabe por portos oficiais, fora os que a gente não sabe. Acho que é até o dobro disso", diz.

Braga explica que o transporte de barco é crucial para o desenvolvimento da Amazônia.

"É por ele que a região se retroalimenta, ou seja, faz a troca comercial e leva pessoas de um lado para o outro. Aqui é a única opção que o passageiro tem, porque avião é caro e estradas não existem. Ou vai de barco ou não vai", completa.

A baixa renda dos moradores da região acaba os levando a buscar viagens mais em conta — e nem sempre seguras.

"Ele não tem condição de pagar uma embarcação sofisticada e mais segura, e muitas vezes vão em embarcações reformadas, de madeira. E para compensar a viagem, o barco acaba levando carga — só passageiro não consegue remunerar. Aí a embarcação leva carga excessiva e compromete a segurança da viagem", aponta.

O professor ainda explica ao UOL que os rios da Amazônia têm características diferentes, alguns deles com ondas. "Não são ondas muito grandes, mas acabam sendo problemas para essas embarcações. Às vezes tem um uma corrente mais forte — não que o barco não seja projetado para isso, mas o problema é que são carregadas acima do limite."

"Outro problema é que o casco não é compartimentado, e quando uma embarcação dessa tomba, a água entra e vai toda para o fundo. É um somatório de fatores", completa.

Fiscalização e capacitação

Segundo o capitão dos Portos da Capitania da Amazônia Oriental, o comandante Manoel Oliveira Pinho, o papel da Marinha na região não é só de fiscalização.

"A gente fiscaliza, sim, mas também cabe à Marinha dar e revisar os cursos para os aquaviários, que são os profissionais dos rios. Atuamos na formação", afirma.

Ele explica que a enorme extensão da malha hidroviária traz dificuldades para fiscalização.

"Só na minha área do Pará são mais de 5 mil km de águas navegáveis. São rios estreitos, em que muitas vezes só embarcações de pequeno porte navegam. A maior parte da área também não é coberta por sinais celulares nem de internet, aumenta nosso desafio", explica.

Para tentar minimizar os problemas, a Marinha tem aumentado a quantidade de fiscalizações.

"Aqui em Belém nós temos uma fiscalização permanente, uma embarcação fica 24 horas. Nos outros pontos, a gente faz equipe itinerante. Em janeiro e fevereiro, quando tem uma grande demanda para região das ilhas, a gente monta uma grande operação", conta.

Nos dois primeiros meses do ano, foram fiscalizadas 2.500 embarcações, o mesmo número de 2018. No ano passado, foram mais de 5.500. Somente na Capitania Amazônia Oriental, foram 5.500 embarcações fiscalizadas em 2019, mais do dobro das 2.500 do ano anterior.

Pinho assegura que, além disso, a Marinha tem usado a comunicação como forma de atuação.

"Estamos trabalhando muito com a consciência da população. Fizemos spots [que são pequenas gravações de áudio] para a Rádio Marinha, que foi criada no ano passado e atende essa região. Nela, a gente faz orientações, recomendações, dicas para passageiros e navegadores. A gente faz vídeos também para passar nas embarcações, terminais, canais de comunicação e mídias sociais", diz.

Segundo o comandante, é comum encontrar problemas nas embarcações durante as fiscalizações.

"Temos muitos tipos de casos: tem comandante que às vezes não é habilitado; tem superlotação e excesso de carga da embarcação; às vezes não há coletes salva-vidas em número suficiente", exemplifica, citando que pode haver punições cíveis e criminais.

"Quando a gente detecta que o comandante não tem a autorização, a gente impõe sanções administrativas. Muitas vezes, no caso superlotação, como não temos competência para ação penal, a gente apreende a embarcação e encaminha para autoridade policial", diz. Neste caso, o responsável pode ser enquadrado por colocar em risco a vida humana, segundo o Código Penal.

Procurada pelo UOL, a Antaq se pronunciou por meio de nota. O órgão informou que conta, em seu organograma, com três unidades na região Norte: Belém, Manaus e Porto Velho.

"Além disso, a Agência dispõe de mais dois postos avançados, que estão localizados em Santarém (PA) e Macapá. Esses órgãos são fundamentais para a fiscalização do transporte fluvial na Amazônia", disse.

Sobre como é feita a fiscalização, a Antaq informou que orienta suas "ações fiscalizatórias por meio do Plano Anual de Fiscalização.

"Nele, está previsto o número de fiscalizações que serão feitas pela Agência. A Antaq atua também fazendo fiscalizações de rotina
e extraordinárias", finaliza.

Os acidentes em números

Segundo a Capitanias dos Portos da Amazônia, atualizados até a última sexta-feira.

Naufrágios:

  • 2017: 39
  • 2018: 44
  • 2019: 49
  • 2020: 10

Mortos:

  • 2017: 61
  • 2018: 34
  • 2019: 49
  • 2020: 38

Escalpelamentos:

  • 2017: 1
  • 2018: 6
  • 2019: 6
  • 2020: ainda sem dados